A redenção do plágio, a originalidade está fora de moda


REMIX - Montagem do rosto de Angelina Jolie sobre a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. Na arte como nos negócios, a cópia faz parte da criatividade (Foto: Montagem sobre foto: Artnet Digital)

Na era do excesso de informação, o futuro pertence àqueles que sabem identificar as boas ideias dos outros, combiná-las e aprimorá-las.

Todo estudante da Universidade de Navarra, na Espanha, passa por um ritual incomum ao ingressar lá. Ele é obrigado a assinar um documento no ato da matrícula, comprometendo-se a evitar plágio em seus trabalhos. A promessa de honestidade acadêmica foi instaurada em setembro, um ano após a universidade constatar índices alarmantes de práticas fraudulentas entre seus estudantes. Segundo um levantamento interno, 60% do corpo discente admitiu já ter copiado e colado trechos de textos retirados da internet em seus trabalhos ao menos uma vez. Na era do “crtl+c” e “crtl+v” em redes sociais, em que ideias e argumentos são reproduzidos indiscriminadamente, é até compreensível a atitude da universidade. Difícil é acreditar que terá efeito.

A questão é mais cultural do que parece. Os universitários de Navarra são de uma geração para a qual não é moralmente condenável copiar algo escrito por outro e compartilhar no Facebook, muitas vezes sem crédito. Para eles, saber encontrar uma resposta na Wikipédia é tão útil (e menos trabalhoso) do que elaborá-la com suas próprias palavras. “Os professores sofrem bastante com isso”, afirma Susan Blum, antropóloga americana e autora do livro My word!: plagiarism and college culture (Minha palavra!: plágio e cultura universitária, em tradução livre, sem previsão de lançamento no Brasil). “Eles não dialogam com os alunos, e isso atrasa a busca por alguma solução.” O problema ganha proporções enormes em decorrência da comunicação ruidosa entre os professores e seus alunos. Mais que diferentes, eles têm duas visões de mundo rivais, que lutam para coexistir nocampus. Enquanto os professores classificam toda repetição como uma transgressão ética, os estudantes encaram o ato como algo natural. Mesmo instituições consagradas, como a Universidade Harvard, nos Estados Unidos, não estão a salvo do problema. Em 2012, ela investigou 125 alunos por suspeita de plágio em prova e expulsou 60.

Diante desse conflito, estudiosos discutem como fomentar a originalidade dentro de uma cultura digital onipresente. A discussão se dá principalmente fora do meio acadêmico, regido por regras rígidas de citações e propriedade intelectual. Há quem argumente que o compartilhamento de ideias estimula a criatividade, em vez de matá-la. “Suas ideias não precisam ser protegidas, elas devem ser compartilhadas”, afirma Austin Kleon, autor do livroRoube como um artista – 10 dicas sobre criatividade (Rocco, 159 páginas, R$ 29,50), lançado no Brasil em 2013. Kleon é um ferrenho defensor do reaproveitamento constante de ideias (somente as boas) para criar algo devidamente novo. “Todo trabalho criativo é construído sobre o que veio antes. Nada é totalmente original”, escreve. Seu raciocínio é quase uma metáfora da célebre constatação do químico francês Antoine Lavoisier em meados do final do século XVIII: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Assim como a matéria é conservada ao mudar de forma, um apanhado de ideias velhas pode se tornar algo novo. Para exemplificar sua tese, Kleon relaciona uma série de lições que podem fomentar a criatividade na vida e no trabalho de qualquer um (leia no quadro abaixo).


É delicado classificar o plágio, seja no âmbito acadêmico ou em outro ramo. Há casos nítidos de pura e simples fraude, como um estudante que entrega um trabalho inteiramente copiado e muda apenas o nome do autor. Também há o plágio não intencional, a exemplo de músicos que escrevem compassos que pensam ter inventado, para depois descobrir que ouviram a mesma sequência de notas noutra ocasião. Entre a má-fé e a cópia acidental, há uma terceira categoria, muito difundida na arte: o uso de elementos de trabalhos anteriores como ponto de partida para criar algo novo.

Segundo Kleon, esse tipo de plágio não deveria ser proibido. “Uma coisa é você tentar se passar por alguém, algo errado”, afirma. “Outra é roubar ideias de várias fontes, combiná-las e transformá-las em algo novo.” Kleon chama essa prática de “roubo criativo”. A tese faz sentido.O mapa e o território não é um romance sobre o sexo das moscas. Há muito mais do que trechos da Wikipédia na obra de Houellebecq. E, embora o ritmo de “Blurred lines” seja semelhante ao de “Got to give it up”, a melodia é totalmente diferente. A prática do roubo criativo tem defensores ilustres. Na década de 1920, o poeta T.S. Eliot escreveu: “Poetas imaturos imitam; poetas maduros roubam; poetas ruins desfiguram o que pegam, e poetas bons transformam em algo melhor, ou pelo menos diferente”. Nas artes, discutir e assumir as referências de outros pintores numa obra nova está longe de ser um tabu. Não à toa, o pintor espanhol Pablo Picasso disse que “arte é furto”.

BOM DE CÓPIA - O músico Robin Thicke, que usou uma batida de Marvin Gaye em sua canção “Blurred lines”. O plágio não impediu o sucesso (Foto:Kevork Djansezian/Getty Images)

A história recente tem exemplos célebres desse tipo de plágio. Em 2010, o escritor francês Michel Houellebecq foi criticado por copiar alguns artigos da Wikipédia francesa em seu romance O mapa e o território. Um dos trechos plagiados descrevia o sexo das moscas. Em sua defesa, Houellebecq afirmou que esse tipo de colagem literária é “parte de seu método”. A polêmica caiu no vazio. O músico Robin Thicke, autor do hit “Blurred lines”, não teve a mesma sorte. A música, que ficou no topo da lista da Billboard, tem uma batida muito semelhante à de “Got to give it up”, de Marvin Gaye. Em janeiro, Thicke e sua gravadora, a Sony, tiveram de fazer um acordo com os filhos de Marvin Gaye para arquivar um processo por plágio. O valor pago não foi divulgado.

No mundo dos negócios, quem imita com qualidade pode se sair até melhor que os responsáveis pela inovação. A Apple, de Steve Jobs, não inventou o mouse, nem o tocador de MP3, nem o tablet. A maneira como aprimorou essas tecnologias permitiu o sucesso do Macintosh, do iPod e do iPad. “Numa tentativa de copiar alguma invenção, algo até melhor pode surgir”, afirma Alec Foege, autor do livro The tinkerers (algo como Os aprimoradores), publicado em 2013 nos Estados Unidos. Foege afirma que a história, a tradição e a cultura americanas fomentam as ações de quem tenta aprimorar inventos, e isso estimula inovações pelo país. “A cópia é inevitável na era tecnológica”, diz. “Mas não devemos nos preocupar com isso, pelo contrário.” Falando especificamente de inovações de produtos, Foege afirma que todo país livre, com uma classe média grande, com indivíduos com tempo livre o suficiente para experimentar sem pressão comercial, tem potencial para inovar. “O advento de equipamentos como impressoras 3D e sites de crowdfunding também ajudam a pessoa comum a criar”, diz.

No século XIX, Alexander Graham Bell e Thomas Edison puderam inventar o telefone e a lâmpada elétrica de maneira praticamente artesanal em seus estúdios. A inovação mundial está cada vez mais concentrada em grandes companhias, protegidas por patentes. A preservação dos direitos tem um objetivo simples e nobre: fazer os inventores lucrar com seus próprios esforços e proibir cópias, que desestimulam a inovação. Mas há quem questione esse ponto de vista. “Não há uma relação antagônica entre imitação, melhoria e inovação”, afirma Kal Raustiala, professor de Direito da Universidade da Califórnia (Ucla) e um dos autores do livro The knockoff economy: how imitation sparks innovation (A economia da cópia: como a imitação estimula a inovação, em tradução livre, sem previsão de lançamento no Brasil), publicado em 2012. “As cópias podem levar gradativamente a produtos inovadores”, diz Christopher Sprigman, professor de Direito da Universidade de Nova York, coautor do livro em parceria com Raustiala. “Não é algo instantâneo.” No livro, os dois apresentam indústrias que são inovadoras exatamente porque dão liberdade para imitar. Mesmo Graham Bell e Edison, dizem eles, não teriam feito suas descobertas sem imitar e aprimorar inventos anteriores. “Grandes descobertas não acontecem da noite para o dia”, afirma Andrew Grant, autor do livro Quem matou a criatividade?. “Elas normalmente são o resultado de anos de trabalho feito por vários indivíduos, uns aprimorando as ideias dos outros.”

O mundo da moda é um exemplo de como recompensar a inovação sem coibir as cópias. Enquanto as tendências são ditadas por grifes tradicionais, lojas como a Zara ou a Forever 21 produzem peças com um design semelhante ou idêntico, mas com o preço muito mais acessível. O glamour das peças de luxo não se extingue, os estilistas conceituados são forçados a criar coisas novas com o barateamento, e mais gente pode aproveitar as últimas tendências. A indústria prospera criativa e financeiramente. A gastronomia vive situação parecida. Não há uma lei que proíba alguém de tentar reproduzir o prato de um restaurante rival – isso também instiga os chefs ambiciosos a ser criativos. Até o mundo do futebol funciona assim. O técnico espanhol Pep Guardiola, atualmente no Bayern de Munique, da Alemanha, tornou-se um dos maiores da história ao conquistar 14 títulos em quatro anos, no comando do Barcelona. Ele já admitiu publicamente que o estilo da equipe, que envolvia a marcação no campo adversário e valorização da posse de bola, foi inspirado na Seleção Brasileira da Copa do Mundo de 1970. Com diversas possibilidades de formações e jogadas, as táticas no futebol sempre mudam. “E isso raramente desencoraja os grandes técnicos a inovar”, escrevem Raustiala e Sprigman.

Copiar boas ideias, porém, continuará inútil para quem não tiver originalidade e criatividade. É para isso que servem as patentes e as leis de propriedade intelectual. Ao proteger o direito dos inventores, elas tornam a cópia um mau negócio e estimulam a criatividade. Quem quer sobreviver é obrigado a inovar. Uma empresa que se limita a imitar seus concorrentes estará destinada ao fracasso, assim como um estudante que copia a Wikipédia em vez de ter suas próprias ideias merece ser expulso. Mas a tecnologia digital mostrou que a cópia também tem seu papel na inovação. Ela tornou mais evidente aquela adaptação que Abelardo Barbosa, o Chacrinha, fez da lei de Lavoisier: “Nada se cria, tudo se copia”.

Fonte: epoca
Por FELIPE PONTES E DANILO VENTICINQUE

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