Cumpramos o que somos, nada mais nos é dado” – Ricardo Reis, Odes
Nietzsche nos dá um conselho: “torna-te quem tu és“. Mas o que isso quer dizer? É preciso, antes de mais nada fugir de todas as interpretações negativistas, derrotistas, niilistas e mecanicistas. Não estamos na frente do oráculo de Delfos lendo: “conhece a ti mesmo”. O tornar-se quem se é passa diretamente por uma análise das forças que constituem o homem e estas forças estão para além de qualquer identidade. Aqueles que seguem por aquela via devem desistir, porque deixam de tentar se superar e acabam fazendo o contrário do que Nietzsche escreve, caindo invariavelmente no niilismo negativo ou reativo.
Tornar-se quem é implica em, antes de mais nada, reunir um grande número de vivências. Explorar aquilo que se é torna-se então o primeiro passo. Significa afirmar conhecer as forças que o constituem, que querem dominar e crescer. Trata-se, em Nietzsche, sempre de uma afirmação mais forte que a negação. O explorador afirma a si mesmo jogando-se no mundo. A felicidade desta existência só pode estar em ela ser o que é! Ora, mas o que é a existência? Vontade de Potência, nada além disso, não poderia ser outra coisa, e nós mesmos somos esta Vontade de Potência.
“Torna-te quem tu és”, ou seja, aproprie-se das forças que o constituem, tome parte no movimento de auto-superação em curso constantemente dentro de si. O homem é um ponto do universo onde uma enorme quantidade de forças se concentram e se atravessam e por fim transbordam, uma roda que gira por si mesma. Por isso é preciso afirmar-se de tal modo que se possa ir sempre no limite de si, expandindo-se. A expansão vem do cultivo das vivências, do cuidado e da prudência de digerir e compreender o que nos acontece. É um processo que exige atenção e prudência. Cultivar-se é fazer crescer as forças que nos habitam e podar as ervas daninhas que insistem em crescer no meio de nós.
-Alexandra Levasseur
Seguindo por este caminho: vivências e cultivos, as condições estão dadas. É preciso apenas jogar o jogo, ou talvez jogar-se no jogo. Escolher os remédios certos, estar sempre atento para seus próprios estados. Ser o senhor de sua grande saúde e, talvez mais importante, de sua doença. Para Nietzsche, conhecer a si próprio é cuidar de si próprio, exercitar-se nesta arte. Observar seus sintomas de decadência, elaborar um diagnóstico preciso e prescrever os remédios no hora certa.
Ao homem não resta nada mais para desejar além daquilo que se foi, daquilo que se é e viver de tal forma que o retorno de tudo seja uma bênção. Ser aquele que diz Sim! Que dá, que afirmar a si mesmo e ao mundo. Não esconder-se na sombra de Deus, do Estado, dos pais. Quem somos? Um destino! Somos o conjunto de forças que precisa o tempo todo elevar seu grau de afirmação até o limite, tornando-se necessariamente diferente neste processo.
Quanta verdade suporta um espírito para a resposta mais direta possível? Pois bem, não somos nada! Somos este caos que se perde nas bordas de si mesmo, um animal na jaula, somos as ondas que batem contra o rochedo, somos o deserto que se esparrama em um mapa de afetos, por onde os ventos cruzam e as dunas se movem. O homem deve aumentar o número de horizontes, e aprender a conjugar a verdade sempre no plural, criar e povoar seus desertos. Ele mesmo deve ser o porta-voz da multiplicidade. Porque, afinal, é disto que ele é feito!
Um homem que vingou faz bem a nossos sentidos; ele é talhado em madeira dura, delicada e cheirosa ao mesmo tempo. Só encontra sabor no que lhe é salutar; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do salutar é ultrapassada. Inventa meios de cura para injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece” – Nietzsche, Ecce Homo, Por que sou tão sábio?, §2
Deixar de negar-se, deixar de iludir a si mesmo, deixar de se repartir e se esconder. “Sou fraco, sou um pecador, sou um fracassado, não posso fazer nada“, em que mundo essa afirmação poderia ser nietzschiana? Nunca! É necessário lutar contra a gravidade, deslizar, dar fluência. O eu é uma ilusão criada pela precária hierarquia interna do corpo. Mas estas forças que nos constituem estão constantemente pressionando, arrastando, empurrando o homem de um lado para o outro. Quem crê no sujeito são os fracos. Tornar-se quem se é significa transvalorar os valores, escolher outros, novos, brilhantes. Encontrar um modo de vida propício ao aumento de suas próprias forças vitais. Quebrar a corrente de escravo, nem mestre nem Deus, não ter mais nenhum senhor além de si mesmo.
Nietzsche ensina, com o Eterno Retorno, e consequentemente o Amor-fati, o duplo sim. O asno em Zaratustra só sabe abaixar a cabeça, os barulhos que ele faz lembram um “sim” animalesco, mas este assim apenas afirma a negação. Ora, mas o camelo que pede para carregá-lo de muitos pesos nem por isso é afirmador. Afirmar é afirmar duplamente, o que foi e as forças de transformação, o que é e também as forças de criação. É aqui que Nietzsche se afasta das doutrinas fatalistas e passivas, seu niilismo é ativo!
A grande preocupação de Nietzsche é que a afirmação precisa ser completa. Afirmar a si mesmo é também afirmar as condições do universo que tornaram as forças ativas possíveis. Neste sentido, arrepender-se é errar duas vezes. É preciso, antes de mais nada, dizer sim até para o que deu errado. Cada negação é uma semente para o Ressentimento. Digerir o tempo, aprender a necessidade do que foi. Um sim sempre se multiplica na cadeia de eventos que o possibilitou, “olhei para trás, olhei para frente, jamais vi tantas e tão boas coisas de uma só vez” (Nietzsche, Ecce homo).
– Alexandra Levasseur
O resultado desta máxima que o filósofo nos prescreve é vencer o ressentimento, deixar de apontar o dedo na cara dos outros procurando culpados. Deixar de apontar o dedo para si mesmo, buscando ferir-se e limpar-se dos pecados. Não, é preciso criar novos valores para tornar-se o que se é. É preciso estar sempre alerta, em estado de guerra, tornar-se guerreiro e preparar-se para a batalha constante. O conhecimento de si não pode acontecer sem um cuidado de si, que permite um crescimento contínuo, um vir a ser infinito. Fazer de inimigos aliados, aprender a navegar nas tormentas.
“Primeiro princípio: temos de precisar ser fortes: senão nunca nos tornamos fortes” (Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos). Podemos apenas dar algumas coordenadas, mas o caminho deverá ser traçado por cada uma. Primeiro as vivências, é preciso um punhado de vivências para saber compreender cada vez mais aquilo que se é. Mas não é apenas de vivências que vive o ser humano, estas precisam ser cultivadas, para que cresçam, para que a parte mais forte de nós nos mostre caminhos e possibilidades. Em face disso tornamo-nos um destino, a própria força em nós gera a diferenciação. O passado, o presente e o futuro se fundem, não há mais um ponto de chegada. A grande saúde é este tornar-se o que se é. Esta é a maior afirmação possível, é a redenção da realidade, a possibilidade de transvaloração de todos os valores, é o grande e esperado Sim que a vida aguarda e recebe exultante.
Sim, bem sei donde provenho:
Insatisfeito, como chama em seco lenho
Vou ardente e me consumo.
Tudo o que toco faz-se luz e fumo,
Fica em carvão o que foi minha presa:
Sou chama com certeza”
– Nietzsche, Gaia Ciência, Rima Alemãs, §62
Fonte: Razão Inadequada
0 comments:
Postar um comentário
Se tem algo que posso lhe dizer após ter chegado até o fim deste post é que estou muito grato por sua visita.