Nos porões da ditadura

Após tomarem o poder em 1964, os militares se preocuparam em criar um órgão de informação moderno e eficiente. Já em 1964, nascia o SNI, o Serviço Nacional de Informações. Além da Agência Central ele dispunha de Divisões de Segurança Interna – DSIs em cada ministério e das Assessorias de Segurança e Informações – as ASIs – em outros órgãos públicos. O gigantismo e a ação diversificada, e até mesmo descontrolada desse órgão levaram seu mentor, General Golbery do Couto e Silva a declarar, seis anos mais tarde, que havia criado um monstro. Já o Centro de Informações do Exército – CIE era um órgão do gabinete do ministro e o fluxo de informações passou a ser feito por outros canais que não os da convencional cadeia de comando. O CIE agindo com autonomia frente a outros órgãos, propiciaria uma informação rápida ao ministro e permitiria rapidez na execução de ordens. Na Aeronáutica, a iniciativa de criar um órgão do tipo nasceu em 1968. A Marinha já possuía seu centro de informações institucionalizado: o CENIMAR. Ao lado desses órgãos de atuação nacional, surgiram outros. Um deles foi a Operação Bandeirantes ou OBAN criada em São Paulo, que teve a frente o delegado Sérgio Paranhos Fleury. O órgão foi amparado por recursos oficiais e doações de empresários entre os quais, destacou-se Henning Boilesen, assassinado, em 1971, por organizações de esquerda:

“TERROR METRALHA INDUSTRIAL PELAS COSTAS EM SÃO PAULO”, lia-se em letras garrafais, no O Globo de 16 de abril de 1971. 

Acusado de patrocinar e assistir a tortura dos presos políticos, o empresário dinamarquês, foi “justiciado”, pelos guerrilheiros ou “vítima de um ato selvagem que um punhado de fanáticos planejou e calculadamente executou”, segundo o Jornal do Brasil. Perseguido por dois militantes, quando se encontrava próximo à Alameda Casa Branca, ele abandonou seu Galaxie no trânsito, saiu correndo e foi abatido por um terceiro militante. Folhetos da ANL e MRT foram distribuídos à população para explicar o ato. O jornalista Percival de Souza assim arrematou o episódio: “Boilensen entusiasmou-se com seu grau de colaboração e passou a frequentar o Doi-Codi, onde foi visto muitas vezes, por muitos presos. A informação da cooperação e intimidade com os porões foi levada para fora. Expondo-se, assim, orgulhoso de suas relações com os militares, acabou se condenando à morte”.

A OBAN tinha por objetivo empreender ações de captura e desmonte de grupos armados usando métodos marcadamente violentos. Em 1970, foram criados os Centros de Operações de Defesa Interna, CODIs e os Destacamentos de Operações de Informações: os DOIs. Todos congregavam membros das três forças, bem como policiais civis e militares. DOI-CODIs eram ligados diretamente ao comandante de cada Exército, e foram eles a força principal para comandar as ações internas. A montagem desse sistema, que ainda tinha desdobramentos nas Zonas de Segurança Interna, não foi consensual dentro da corporação militar. Resultou basicamente da ação da “linha dura” e dos anticomunistas mais exaltados, civis e militares. O livro de Celina d´Araújo explica a complexíssima cadeia operacional em que circulavam informações, prisões, violências. E cadeia cheia de brechas para que faltasse controle e para que, em nome da segurança nacional, houvesse derrapagens de todo o tipo. Não à toa, muitos comandantes afirmaram não aprovar os métodos violentos usados dentro de suas unidades. E a autora alerta: entender as forças armadas é compreender sua dinâmica sem confundir todos os membros da corporação com os que praticaram abusos e atrocidades dentro de suas unidades e em nome da corporação.

Segundo dados do Brasil nunca mais, a categoria social mais atingida por tais “derrapagens”, ocupando o primeiro lugar nos casos de morte, tortura e denúncias, foram os estudantes. Diz Celina d´Araújo que num período em que a população de nível superior correspondia a 1,4 da população, esse pequeno contingente contribuiu com 39% dos casos de morte por razões políticas, 26% dos casos de tortura e 21% dos denunciados. A maior parte dos que aderiram à guerrilha provinha de setores sócio educacionais de níveis mais elevados, o que aumentava a reação dos militares que julgavam o inimigo melhor intelectualmente preparado do que muitos de seus quadros. Passou a fazer parte das técnicas de combate aos grupos rebeldes a infiltração de agentes de espionagem e contra-espionagem.

Como se sabe, a repressão aumentou no final da década de 60, quando começaram os sequestros e assaltos a bancos. Mas muitos brasileiros não entendiam nem o que se passava. Não à toa, Lizir Arcanjo conta: “O medo voltaria a nos rondar, alguns anos depois, na Escola Normal, quando soubemos que três professores haviam sido levados de suas casas, no meio da noite. Formou-se um burburinho apreensivo, em meio aos estudantes, mas jamais ouvimos alguém falar a palavra “comunismo” ou qualquer referência ao golpe militar. A partir de 1972, quando me transferi para Salvador, para cursar a Faculdade, foi que passei a tomar conhecimento da realidade política do país. Dos anos anteriores restaram-me duas sensações: a do silêncio misterioso e do medo de não sei o quê”.

Distantes da realidade da maioria da população, os próprios guerrilheiros ironizavam sobre como conseguiam ludibriar os órgãos policiais e livrar-se de operações repressivas. Até os militares reconhecem o despreparo, o que os levou a tomar as rédeas em situação que consideravam de excepcional perigo. O General Carlos Alberto da Fontoura confirmou: “As Forças Armadas como a Polícia, não tinham preparo para combater a guerra de guerrilha. Nenhum. […] Tanto que levou muito tempo para acabar. Começou em 65, 66, 67, mas a guerrilha do Araguaia só foi acabar no governo Geisel”.

Nos anos imediatos após 64, início da luta armada e da consequente criação de órgãos de informação e repressão, os relatos sobre violências nas prisões e presídios já chamavam atenção. Desde abril, depois de uma viagem a Recife, a serviço do Correio da Manhã, o jornalista e político Márcio Moreira Alves começou a denunciar a tortura executada nos quartéis: “É com grande tristeza que começo esse resumo final dos crimes que foram cometidos contra presos em Pernambuco, nos meses de abril, maio e junho. Tristeza não apenas por ter comprovado a que ponto vai a baixeza e a covardia de agentes policiais e de um punhado de oficiais indignos do exército brasileiro como pelas falsas interpretações e confusão que alguns elementos subservientes aos poderosos procuram criar em torno das investigações sobre torturas. Após cuidadosas averiguações, após conversar com dezenas de torturados e suas famílias, após ouvir a confirmação dos maus-tratos infligidos a um preso da boca do próprio coronel Antônio Bandeira, chefe da sessão do IV Exército, tenho firmes elementos de convicção para assegurar que algumas dezenas de presos políticos foram submetidos a torturas nos quartéis e delegacias do Recife”.

E listava o caso de um membro do sindicato dos ferroviários que preferiu se atirar do terceiro andar da Polícia Central, a continuar a sofrer interrogatórios. De um preso com tímpanos furados devido aos “telefones”, entre outros. Reação dos leitores? Pouca ou nenhuma. Chocado, ele registrou, o pouco eco que o assunto tinha na sociedade: “Em agosto de 1964 estávamos alcançando um terrível ponto de insensibilidade. Tratávamos as denúncias com certo automatismo”. Sobre a tortura sofrida por um estudante angolano virar matéria, numa reunião de pauta “alguém observou que os leitores estavam cansados dos relatos de tortura, talvez fosse melhor outro assunto”.

Texto de Mary del Priore


Acervo Arquivo Nacional – Foto do corpo do jornalista Vladimir Herzog, após a autópsia, em 25 de outubro de 1975. O jornalista morreu após sofrer torturas no DOI-Codi de São Paulo


Fonte: historiahoje

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