Sou feliz sendo gorda, mas precisamos conversar

Eu sou feliz sendo gorda. Pode acreditar. Me sinto linda, gostosa, desejável. Eu não sou linda apesar de ser gorda, eu sou linda E gorda. Ser gorda me define. 


Eu cresci sendo gorda e ouvindo coisas com “isso não é saudável, você precisa emagrecer” ou “desse jeito ninguém nunca vai te amar”. E o mais triste nisso tudo é que gente realmente acredita. Porque são as pessoas que amamos e que cuidam de nós que dizem isso. Tem também aqueles infelizes que jogam coisas na gente, nos humilham sempre que podem e dizem que somos nojentas. Mas quando conseguimos deixar isso pra trás, algo muito incrível nos acontece e isso se chama amor.


Há uns anos atrás eu decidi que não queria mais emagrecer. Eu decidi ser gorda e nunca mais me frustrar com o não resultado “daquela dieta nova”. Entendi que eu me frustrava muito menos aceitando ser gorda do que lutando contra isso e, por consequência, me destruía muito menos. Resolvi deixar pra trás a vontade de ter uma doença como diabetes ou câncer pra conseguir emagrecer. Isso faz parte da minha história e me dói que tenha sido assim, mas é possível mudar. Eu estou satisfeita e feliz o tempo todo? Não. Ainda encontro problemas em ser gorda? Muitos! É só entrar em qualquer loja de roupas comum e eu encontro vários. Tentar me relacionar então… um martírio! Lembra daquilo que a gente acreditou? Pois é. Mesmo aceitando e amando o meu corpo, ainda existem as pessoas que não amam e que não respeitam. Elas entendem gorda como um adjetivo que qualifica caráter, beleza e até inteligência. Por isso eu insisto em falar sobre isso.

Li um texto outro dia que me fez lembrar de muitas amigas que tive e que hoje não estão mais ao meu lado. Elas costumavam dizer “eu te amo” e hoje quase não me dizem “oi” ou “feliz aniversário”. Tudo bem, acho que as vidas seguem, se cruzam, se descruzam. Vai ver nem é por ser gorda. Mas provavelmente algumas dessas pessoas passaram a não me querer por perto quando eu assumi isso de verdade junto com o feminismo. Entendo, ninguém quer ser cobrado ou corrigido, mas eu também não quer ser desrespeitada, ignorada ou usada. Quando a gente se mete na militância é porque quer mudar o mundo. Quer transformar as coisas ruins em boas.

Dessas coisas que incomodam quando você é a única gorda do rolê a que me veio à cabeça recentemente é justamente o lance dos relacionamentos. No momento, os que eu não tenho e adoraria ter. Por algum tempo me perguntavam se eu não tinha nenhuma amiga pra apresentar e eu ia atrás disso pros meus “brothers”. E eu me perguntava quando isso iria acontecer comigo. Será que um dia vão me apresentar alguém? Nessa época eu ainda pensava em dietas e cirurgias plásticas e ficava pensando “será que não conhecem ninguém que sirva pra mim? Será que nenhum cara que essas amigas conhecem se interessaria em mim? Talvez nenhum goste de mina gorda”. Até que a gente se acostuma a nunca estar acompanhada ou nunca ser apresentada a ninguém e se fecha como que pra sempre. Ninguém vai ser apresentado mesmo. Esse sentimento é horrível e é muito maior do que só apresentar pessoas.

Tem uma hora que ser gorda vai além da nossa própria aceitação. É também uma questão externa. De não existir nas lojas e ter coragem de entrar nelas mesmo assim, de conseguir comer em público sem achar que estamos sendo julgadas, de perceber o sentimento de pena nos olhares e não sofrer mais com isso. Não depende só de nos aceitarmos, nos amarmos e nos acharmos lindas. Pois mesmo nos discursos de empoderamento a gente ainda pensa se nos dizem “você é linda” apenas pela amizade ou se somos mesmo, independente da relação. Eu me acho linda justamente por ser gorda, por isso ser tão parte da minha personalidade, da minha forma de pensar. Será que me acham linda por isso também?

Como feminista, me sinto na obrigação de refletir sobre como fui aquela que não é vista como uma mulher por muitos homens cis. Ser gorda ainda é não ser sexy, não ter tesão, não fazer sexo casual, não ser gostosa. A gente não pode dançar livremente e nem falar de sexo sem pegar um ou outro olhar torto. Pra uma gorda, só o ato de sair de casa é um ato de resistência. Nós nunca somos as mocinhas, as musas, as empresárias, as artistas. Nós somos as palhaças, as que são usadas pelo comedor da novela, as humilhadas. A nós cabe apenas isso ou o papel de “brother”. Como é que a gente vai se relacionar? Com que garantias de respeito?

Eu namorei e transei como qualquer outra pessoa. Quer dizer, quase qualquer pessoa. Nunca foi muito fácil desapegar da roupa. Às vezes rola uma entrega e a gente esquece até a cor do nosso cabelo. Mas nem sempre. E deveria ser sempre.

Hoje eu não sinto mais nojo ao olhar no espelho. Aquele velho inimigo hoje é um grande parceiro. Hoje, ao me olhar no espelho, eu não sinto raiva, eu sorrio. Eu não olho apenas o meu rosto bonito, olho meu corpo todo e ele é lindo. Eu queria ter me aceitado muito mais cedo. Teria me poupado muitos anos de sofrimento. Foi duro e me machucou. Agora não me machuca mais. Agora eu lido com isso. Reflito sobre, converso com as pessoas sem que isso seja um problema pra mim. E também entendo que ainda é um problema para as outras. Mas aqui dentro, ser gorda é só amor. Mas me relacionar… Bem, relacionamento pra muita mulher gorda ainda é um capitulo que está por vir. Um que vamos escreveremos com consciência, respeito, amor próprio, desconstrução e, acima de tudo, construção.

Fonte: Revista Pólen
Texto: Marília Moreno // Arte: Raquel Thomé

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