A estreia já engajada de Toni Morrison

Ao mesmo tempo dialogando e criticando uma tradição norte-americana da qual faz parte William Faulkner, Toni combina crítica social a uma narrativa fragmentada, com vários focos e uma dose não desprezível de ousadia estilística.

Texto originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 22 de fevereiro de 2003.

Wikimedia Commons
Toni Morrison morreu nesta terça-feira (06/08), aos 88 anos

Quando saiu no Brasil Como e Por Que Ler, o crítico Harold Bloom afirmou gostar "dos romances de Toni Morrison, “escritos antes de ela se tornar politicamente correta”. “Mas, desde que ela decidiu que devia ser representante de uma consciência negra, de sua origem africana, do feminismo, do marxismo e de todas essas ideologias, se tornou uma escritora ruim, de livros, eu diria, ilegíveis, como Jazz e Paraíso. Ela é um exemplo de um talento imenso que se deixou seduzir pelas ideologias da moda.”

Pois os brasileiros agora podem conferir a primeira Toni, a autora de O Olho mais Azul (Companhia das Letras), romance de estreia publicado nos Estados Unidos originalmente em 1970. E parece haver um problema no raciocínio de Bloom, cuja obra preferida da autora é Song of Solomon, também dos anos 1970 — porque o livro mostra que ela já era, desde o início, inegavelmente, uma escritora altamente engajada num projeto de raça, classe e gênero. Goste o leitor disso ou não. A Academia Sueca gostou e lhe concedeu o Nobel de 1993.

O Olho Mais Azul narra o encontro de duas famílias negras nos anos 1940, simbolizadas pelas meninas Claudia MacTeer e por Pecola Breedlove. Pecola vem de uma família que acaba de se desmanchar, resultado de uma violenta briga entre a mãe e o pai, alcoólatra, e é encaminhada à família de Claudia.

Não é preciso muito para identificar aí as três ideologias, ainda que de modo aproximado, que Bloom identifica. Mas ela segue em frente. Pecola reza para ter olhos azuis. Claudia, por outro lado, odeia as bonecas brancas que ganha de presente e não entende por que os adultos se queixam quando ela as destrói, tentando enxergá-las, conhecê-las por dentro, ainda que para isso tenha de usar de uma boa dose de seu instinto destrutivo infantil.

Ao mesmo tempo dialogando e criticando uma tradição norte-americana da qual faz parte William Faulkner, Toni combina a crítica social a uma narrativa fragmentada, com vários focos e uma dose não desprezível de ousadia estilística. O romance começa assim: “Esta é a casa. É verde e branca. Tem uma porta vermelha. É muito bonita. Esta é a família. A mãe, o pai, Dick e Jane moram na casa branca e verde. Eles são muito felizes. Veja a Jane.” 

Pouco à frente, ela retira a pontuação do primeiro parágrafo e, depois, os espaços, amontoando as orações numa única palavra - apertando as letras como o faz com os personagens na história.

“Este livro é uma preciosidade para mim”, declarou Toni, 33 anos depois da primeira edição do livro (no qual, num posfácio datado de 1993, aponta uma série de problemas). “Foi o meu primeiro e foi um livro radical para o seu tempo; ninguém tinha colocado meninas negras, pessoas tão frágeis, no centro de um romance.”

Nesta entrevista, como em várias outras que concedeu, Toni parece saber muito bem quem é. Nega os rótulos, nega que seja politicamente correta ou marxista. “Não gosto de rótulos, tento ficar longe deles”, diz, mas também não se deixa seduzir por críticas que possam ser usadas contra as pessoas que procura representar — negros, pobres, mulheres. Tenta um equilíbrio que lhe permita criticar a sociedade em que vive e preservar sua individualidade.

Na época do lançamento, exceto por uma resenha, a obra foi analisada apenas do ponto de vista sociológico, o que está longe de agradá-la. “Houve uma única exceção; em geral, foi tido como um livro tão desprezível quanto Pecola.” Na época, Toni trabalhava como editora, “ajudando” outros autores. Mas não mostrou a obra a ninguém que pudesse cumprir o mesmo papel, até o momento de publicá-la. 

“Aprendi muito a escrever e como não escrever. Não tinha um editor, ninguém me ajudou.”

Apesar de a história se passar na cidade de Lorain (Ohio), onde viveu a escritora, ela nega que essa seja uma obra autobiográfica. “A maioria das garotas que conheci se pareciam com Claudia". Pecola representa o tipo de garota que todas correram algum risco de se tornarem, dependendo da dose de combinação de racismo, alcoolismo e violência doméstica que sofriam. 

“Outra coisa que esse livro me ajudou a perceber é que não estava interessa da em minha própria vida.” Na sua opinião, uma menina negra hoje se sente melhor do que uma garota negra dos anos 1940. “Apesar de o racismo continuar a existir, uma menina negra hoje pode olhar ao redor e fazer coisas que não poderia naquele tempo. Pode olhar ao redor e ver negros em posições de poder. Não tem de aceitar o mundo, sabe que há negros americanos que tiveram sucesso na política, no entretenimento, em todas as áreas.”

Durante a primeira Guerra do Golfo, Toni Morrison afirmou que era mais fácil entender os motivos que levaram Saddam Hussein a ocupar o Kuwait que os que permitiam aos EUA invadir o Panamá. Ela ri quando é lembrada da frase. Agora, diz apenas que os governos nem sempre tornam claros os motivos que orientam as questões internacionais. E lamenta que os EUA estejam se engajando em mais uma guerra contra um inimigo que não tem condições de se defender.

Estamos construindo um histórico de situações como essas; e, no passado, os EUA já se engajaram em guerras justas.”

TRECHO

Elas estavam por todo lado. Dormiam seis amontoadas, a urina de todas misturando-se durante a noite quando molhavam a cama, cada uma sonhando seu sonho de doces e batatinhas fritas. Nos dias longos e quentes, ficavam à toa, tirando reboco das paredes e cutucando a terra com paus. Sentavam-se em pequenas fileiras nas calçadas, amontoavam-se nos bancos da igreja, tirando espaço das crianças mulatas, bonitas e limpas; faziam palhaçadas nos playgrounds, quebravam coisas em lojas baratas, corriam na frente da gente na rua, faziam pistas de gelo nas calçadas inclinadas no inverno. As meninas cresciam sem saber usar uma cinta e os meninos anunciavam que tinham atingido a idade viril virando para trás a aba do boné. Nos lugares onde elas moravam não crescia grama. As flores morriam. Abatiam-se sombras. Floresciam latas e pneus onde elas moravam. Viviam de feijão-fradinho frio e refrigerante de laranja. Como moscas, elas esvoaçavam; como moscas, pousavam. E esta pousara em sua casa. Por sobre a corcova das costas do gato, ela olhava.

“Fora”, disse, em voz baixa. “Sua negrinha ordinária. Fora da minha casa.”

O gato estremeceu e sacudiu o rabo.

Fonte: Opera Mundi

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