A reforma protestante e o direito à resistência

Martinho Lutero fala perante o Imperador Carlos V na Dieta de Worms, em abril 1521, antes de ser considerado herege pela Igreja Católica por causa dos .... Foto: Getty Images

Martinho Lutero fala perante o Imperador Carlos V na Dieta de Worms, em abril 1521, antes de ser considerado herege pela Igreja Católica por causa dos ideiais que defendia

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Desde o começo da Reforma Religiosa, com a exposição das 95 teses de Martim Lutero, em Wittemberg, Saxônia, em 31 de outubro de 1517, as lideranças protestantes enfatizaram sua obediência às autoridades instituídas, isto é, aos príncipes e ao Imperador do Sacro Império Romano-Germano (no caso, Carlos V). Imaginavam, tanto Lutero como Calvino, promover uma mudança teológica e eclesial em que nada alterasse a ordem política em que viviam. Queriam, até então, que a Teologia ficasse distante da Política, ocupando postos bem separados. Naqueles inícios, ainda se apoiavam na Teoria da Obediência Passiva herdada dos primórdios do Cristianismo.

O começo da perseguição religiosa

Todavia, não foi este o entendimento das autoridades imperiais e papais que gradativamente começaram a dar caça aos reformadores dissidentes e retirar-lhes qualquer vantagem no tocante à liberdade religiosa. A tolerância que haviam demonstrado na Dieta de Worms, de 1521, sofreu uma reviravolta oito anos depois. Ninguém, na ocasião, poderia imaginar que isto provocaria o surgimento da Doutrina do Direito à Resistência que, segundo Quentin Skinner, seria a base dos movimentos reformistas e revolucionários modernos (ver "As fundações do pensamento político moderno", 1996).
Os começos do século XVI na Europa Ocidental anunciavam-se turbulentos. O Sacro Império Romano-Germano e o Papado sentiam-se ameaçados pelos surtos de desobediência dos príncipes e dos vários movimentos utópicos de sedição religiosa que eclodiam aqui e ali por todo o Império.

Naturalmente que, tanto o Trono como a Mitra agia de comum acordo em manter a coesão política e religiosa da Europa Cristã Ocidental e passaram a temer que os seguidores de Lutero, descontentes, começassem a minar tal unidade. Se o imperador Carlos V mostrou-se impotente em dobrar o monge alemão, alguns anos depois, revolveu tomar medidas mais repressivas.

A situação política a favor do Império se desanuviara no ano de 1529. Os turcos islamitas de Solimão, o Magnífico, haviam sido obrigados a se retirar dos limites de Viena e o rei da França Francisco I havia sido abatido por Carlos V. Sentindo-se fortalecido pelo êxito diplomático e militar, o imperador decidiu remover, pela Dieta de Speyer, de 1529, as outorgas que fizera anteriormente aos luteranos. Estes (8 príncipes e 14 cidades liderados por Johan Von Brandenburg-Ansbach e Phillip Von Hesse) enviaram os seus protestos, sem que isto provocasse o recuo de Carlos V (desde então foram denominados como protestantes).

Na nova dieta marcada para ser realizada na cidade imperial de Augsburg, na Suábia, no ano seguinte, eles apresentaram o que passou a se chamar a Confissão de Augsburg (Augsburger Konfession, 1530), redigida pelo humanista luterano Phillip Melancheton (documento que, com seus 26 artigos, se tornou, nos anos seguintes, um verdadeiro manual do protestantismo).

Os teólogos católicos refutaram-na com a Contestação Papal (Confutatio Pontifícia), fazendo com que o imperador exigisse a submissão dos luteranos. O resultado direto desta determinação fez com que os dissidentes, antevendo perseguições, se reunissem na Liga Protestante (1530).

Os príncipes e teólogos luteranos viram-se frente ao problema de resistir ao imperador, pois eles não admitiam a interferência da Coroa nas questões de consciência e de fé. Sábios juristas alemães foram então convocados a darem pareceres para determinar quais os instrumentos legais poderiam sustentar a sua causa.

Argumentos jurídicos

Os mestres-das-leis consultados pelos príncipes basearam-se tanto na Teoria Feudal (que dava autonomia legislativa aos barões e condes) como na Constituição Imperial (que permitia uma ampla possibilidade de ação dos nobres em casos legais) para embasar seus pareceres. Desde os tempos mais remotos, as regiões alemãs do Sacro Império tinham sua própria Dieta e obedeciam aos códigos locais.

Por exemplo, em 1225, os saxônios codificaram suas leis no 'Espelho Saxônico' (Sachsenspiegel), o mesmo ocorrendo com os suábios (Schwabenspiegel). Eles garantiam a autonomia de seus povos face ao poder central, fragilmente mantido por um corpo de burocratas (Dienstmannen)*. Os juristas entendiam que, do mesmo modo que o imperador não tinha o costume de intervir nelas, o mesmo se dava nos assuntos pertinentes à fé. Disseram então a Phillip Von Hesse que era possível sim enfrentar o imperador, pois que ele estava ultrapassando os limites do seu cargo, não havendo ilicitude alguma em combatê-lo.

Esta ainda não era a posição de Lutero já que, quando foi procurado por Johann da Saxônia, tentou dissuadi-lo de opor-se ao soberano dizendo-lhe que devia continuar obediente 'mesmo que ele (Carlos V) atentasse contra o Evangelho'. Pouco tempo depois, o líder reformador, que havia sido ameaçado por sicários, mudou de ideia.

Para os juristas auscultados, o imperador portava-se como um tirano ao querer forçar os protestantes a serem reintegrados no corpo da comunidade cristã por ele presidida. Além disso, acumulava-se no horizonte da Europa Ocidental uma enorme nuvem da reação católica pronta a desabar sobre os 'hereges'**.

* Ver Ricardo da Costa, Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais - IV EIEM,
2003

** Na França, Henrique II determinou pelo Édito de Fontainebleau, de 1540, que se executasse qualquer dos hereges. A Câmara Ardente (a Chambre ardente), instituída por ele, um tribunal sinistro criado especialmente para julgar os huguenotes, proferiu mais de 500 condenações. Pelo Édito de Compiège, assinado por Francisco II, em 1557, renovou-se o castigo de morte para as heresias, impulsionando novas perseguições, o que levou o reino à sua primeira guerra religiosa (1561). Na Inglaterra, a partir de 1557, a rainha Mary Tudor, apoiada pelo Arcebispo da Cantuária, Reginald Pole, decretou as 'perseguições marianas' aos protestantes, mandando 300 deles para as fogueiras da purificação. Desde então a apelidaram de Maria, a Sanguinária (Bloody Mary).

Lutero respondeu àquela situação com a edição da 'Advertência do doutor Lutero ao seu querido povo alemão' (1531), na qual denunciou que os seguidores do Papado estavam se preparando para uma guerra. Consequentemente 'não podiam os magistrados ser legítimos', uma vez que estavam agindo 'com força injusta', apoiando-se 'no poder dos punhos'. Caso estoure a guerra, ele não reprovará os que resistirem aos 'papistas assassinos e sanguinários', pois serão 'ações de legítima defesa'.

A Doutrina da Resistência Ativa

Desde que o imperador extrapole seus poderes, se torna um agressor, sendo assim necessário resistir-lhe. O humanista e teólogo Philip Melanchethon, cognominado mais tarde como 'o preceptor da Alemanha' (Praeceptor Germaniae), acompanhou-o na argumentação. No seu tratado 'Do ofício do Príncipe', de 1539, assegurou que se o magistrado atormenta o súdito com injúrias atrozes e notórias, é perfeitamente legal que ele se defenda impelido pela aversão 'à violência imposta'. Os protestantes começaram a se sentir como se estivessem nos primeiros tempos do cristianismo, ocasião em que os césares romanos os tratavam como subversivos jogando-os nas arenas das feras.

Martin Lutero e Philip Melanchethon, em vista disto, substituíram então a Doutrina da Obediência Passiva pela da Resistência Ativa. Deste modo, foi a política imperial crescentemente intolerante, somada aos rigores punitivos da Contrarreforma católica, iniciada em 1545, que fez com que os cabeças da Reforma abandonassem a Doutrina Paulina da Não-resistência.

Antes das perseguições se intensificarem, o reformador genebrino defendia uma posição ultraconservadora. Entendia que os príncipes por serem 'ministros de Deus' e 'representes de Deus', fossem os regimes aristocráticos ou democráticos, todos eram instituídos por Deus.

Jamais, enfatizou Calvino, deveria haver reação ao comando do magistrado: desobedecê-lo 'era resistir a Deus'. Chegou (no Instituto) ao extremo de afirmar que quando Deus enviava um Tirano ele o fazia 'para punir impiedosamente o povo', não sendo tolerável qualquer oposição. O melhor, concluiu ele, era 'obedecer e sofrer'*.

* Estas considerações de Calvino eram decorrentes do surgimento dos anabatistas (rebatizadores) em 1525 - simultâneo a grande rebelião dos camponeses alemães, a Bauerkrieg. Tratou-se de um movimento radical que fez parte do que, em alemão, denominou-se de radikalreformatorisch Christian ou os 'protestantes do protestantismo', pois propunha um tipo de comunismo cristão e a separação do Estado da Igreja (eram pacifistas e favoráveis à poligamia), rejeitando igualmente a burocracia sacerdotal. Em fevereiro de 1534, eles, liderados por Johan Matthys, e depois por Johan de Leida (que se proclamou rei), destituíram o conselho da cidade de Münster e assumiram o controle, proclamando-a como a 'Nova Sião', instaurando uma política de perseguição aos outros protestantes (luteranos) e aos católicos. Várias revoltas de anabatistas ocorreram então em Groningen, na Frísia e na Holanda, sem nenhum sucesso. Münster foi tomada de assalto cinco meses depois e os líderes anabatistas, denominados de 'apóstolos', foram barbaramente torturados e executados em janeiro de 1536 pelos acólitos do Bispo de Münster, que recebeu apoio do Império para por a cidade em sitio e recuperá-la. Os menonitas, os huteristas e os Amish, que imigraram para a América, consideram-se descendentes dos anabatistas.

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