Juliano Moreira: um psiquiatra negro frente ao racismo científico
Juliano Moreira (1873-1933), baiano de Salvador, é freqüentemente
designado como fundador da disciplina psiquiátrica no Brasil. Sua
biografia justifica tal eleição: mestiço (mulato), de família pobre,
extremamente precoce, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 13
anos, graduando-se aos 18 anos (1891), com a tese "Sífilis maligna precoce".
Cinco anos depois, era professor substituto da seção de doenças
nervosas e mentais da mesma escola. De 1895 a 1902, freqüentou cursos
sobre doenças mentais e visitou muitos asilos na Europa (Alemanha,
Inglaterra, França, Itália e Escócia).
De 1903 a
1930, no Rio de Janeiro, dirigiu o Hospício Nacional de Alienados.
Neste, embora não fosse professor da Faculdade de Medicina do Rio,
recebia internos para o ensino de psiquiatria.
Aglutinou ao seu redor
médicos que viriam a ser, eles também, organizadores ou fundadores na
medicina brasileira, de diversas especialidades: neurologia,
psiquiatria, clínica médica, patologia clínica, anatomia patológica,
pediatria e medicina legal, tais como Afrânio Peixoto, Antonio
Austragésilo, Franco da Rocha, Ulisses Viana, Henrique Roxo, Fernandes
Figueira, Miguel Pereira, Gustavo Riedel e Heitor Carrilho, entre
outros.
Um aspecto marcante na obra de Juliano
Moreira foi sua explícita discordância quanto à atribuição da
degeneração do povo brasileiro à mestiçagem, especialmente a uma suposta
contribuição negativa dos negros na miscigenação.
A posição de Moreira
era minoritária entre os médicos, na primeira década do século XX, época
em que ele mais diretamente se referiu a esta divergência, polemizando
com o médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906). Também
desafiava outro pressuposto comum à época, de que existiriam doenças
mentais próprias dos climas tropicais.
Convém
ressaltar que a teoria da degenerescência nunca seria colocada em
questão por Moreira, mas apenas os seus fatores causais. Para ele, na
luta contra as degenerações nervosas e mentais, os inimigos a combater
seriam o alcoolismo, a sífilis, as verminoses, as condições sanitárias e
educacionais adversas, enfim; o trabalho de higienização mental dos
povos, disse ele, não deveria ser afetado por "ridículos preconceitos de
cores ou castas (...)".
Em seu discurso de
posse, ao ser aprovado no concurso para professor da Faculdade de
Medicina da Bahia, em maio de 1896, Moreira descreveu de forma tão
elegante quanto contundente o que parece ser sua experiência pessoal com
relação ao marcante preconceito de cor na sociedade brasileira de
então.
Endereçando-se "(...) a quem se arreceie de que a pigmentação
seja nuvem capaz de marear o brilho desta faculdade (...)", disse:
"Subir sem outro bordão que não seja a abnegação ao trabalho, eis o que
há de mais escabroso. (...) Em dias de mais luz e hombridade o
embaçamento externo deixará de vir à linha de conta. Ver-se-á, então que
só o vício, a subserviência e a ignorância são que tisnam a pasta
humana quando a ela se misturam (...). A incúria e o desmazelo que
petrificam (...) dão àquela massa humana aquele outro negror (...)"2 (págs.17-18).
Resumidamente,
pode-se dizer que, de meados do século XIX até cerca de 1910, o país se
definia prioritariamente pela raça, isto é, as discussões sobre o
caráter nacional e o futuro da nação passavam pela solução dos problemas
atribuídos à miscigenação do povo brasileiro.
A partir da década de
1910, e especialmente após o fim da Primeira Guerra Mundial, o movimento
pelo saneamento rural do Brasil ganhou força, e se deslocou o foco para
a doença ou as doenças dos brasileiros.
Um Brasil desconhecido seria
revelado a partir de expedições de órgãos do governo, como as de Cândido
Rondon, do Mato Grosso ao Amazonas, em 1907 e 1908, e as expedições
científicas de Oswaldo Cruz. A famosíssima frase do médico Miguel
Pereira, "O Brasil é um imenso hospital", dita em 1916, marcou o início
deste movimento.
A exprobração à mestiçagem e ao nosso clima tropical
cedeu lugar à condenação ao governo por abandonar as populações
interioranas; seu atraso passou a ser atribuído ao isolamento geográfico
e às infestações por doenças parasitárias, especialmente ancilostomose e
doença de Chagas. Ao mesmo tempo, intensas campanhas sanitárias eram
coordenadas por Oswaldo Cruz, contra a febre amarela e contra a varíola,
doenças que espantavam muitos visitantes e imigrantes do Brasil.
A
doença tornou-se a chave para a identificação do Brasil, a higienização
sua possibilidade de redenção. A ciência, mais
especificamente a medicina, tendeu, então, a se auto-representar como
norteadora do processo de definição da nacionalidade e da modernização
do país.
O contexto político e cultural de sua
época deve ser considerado quando se analisa a obra e a atuação de
Juliano Moreira. Ele alinhou-se às correntes que então representavam a
modernização teórica da psiquiatria e da prática asilar. Demonstrou isto
em sua filiação à escola psicopatológica alemã ¾ foi divulgador da obra de Kraepelin ¾ e nas mudanças que introduziu quando assumiu o Hospício Nacional de Alienados.
Como
ele mesmo descreveu, foram estas as mudanças: instalação de
laboratórios de anatomia patológica e de bioquímica no hospital;
remodelação do corpo clínico, com entrada de psiquiatras/neurologistas e
outros especialistas (de clínica médica, pediatria, oftalmologia,
ginecologia e odontologia); a abolição do uso de coletes e camisas de
força; a retirada de grades de ferro das janelas; a preocupação com a
formação dos enfermeiros; o grande cuidado com os registros
administrativos, estatísticos e clínicos, entre outros.
Sua atuação
institucional incluiu a organização da "Assistência aos Alienados", mais
tarde Serviço Nacional de Assistência aos Psicopatas, tendo redigido,
em 1903, uma proposta de reforma do Hospício Nacional e insistido junto
ao governo para a aprovação da legislação federal de assistência aos
alienados, promulgada em 22/12/1903.
Sua
extensa obra escrita abrangeu várias áreas de interesse; inicialmente,
publicou estudos nas áreas de sifiligrafia, dermatologia, infectologia e
anatomia patológica.
A seguir, concentrou-se cada vez mais nas doenças
nervosas e mentais, em descrições clínicas e terapêuticas, escreveu
sobre modelos assistenciais e sobre a legislação referente aos
alienados, discutiu a nosografia psiquiátrica e estudou as histórias da
medicina e da assistência psiquiátrica no Brasil.
Tinha especial
interesse pela então chamada "psiquiatria comparada", ou seja, as
manifestações das doenças mentais em culturas diversas, como atesta a
sua correspondência com Emil Kraepelin.
Seu
espírito aberto e inquieto não ignorou a psicanálise; tendo domínio do
alemão, conhecia as obras de Freud e tinha uma avaliação crítica delas.
Numa resenha em que elogiou o livro de Franco da Rocha, "O pansexualismo na doutrina de Freud"
(1920), referiu que a Sociedade Brasileira de Neurologia vinha
promovendo palestras de divulgação da psicanálise e comentou, com sua
ironia peculiar, que esta era pouco conhecida no país porque "No Brasil,
em geral os colegas, em obediência à lei do menor esforço, aguardam que
as idéias e as doutrinas passem primeiro pelo filtro francês para que
nos dignemos a olhá-las contra a luz (...)".
Ao
longo de toda sua vida, participou de muitos congressos médicos e
representou o Brasil no exterior, na Europa e no Japão. Foi membro de
diversas sociedades médicas e antropológicas internacionais; fundou, em
colaboração com outros médicos, os periódicos Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal (1905), Arquivos Brasileiros de Medicina (1911) e Arquivos do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro (1930) e a Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal (1907).
Finalizando,
para melhor entender a atuação de Juliano Moreira deve-se recordar que,
nas primeiras décadas do século XX, a medicina brasileira acreditava
ser capaz de dirigir o processo de modernização e sanitarização do país.
Assim também cria Juliano Moreira e sua atuação foi coerente com esta
visão; para ele, o principal papel da psiquiatria estava na profilaxia,
na promoção da higiene mental e da eugenia. Em que pese o caráter
francamente intervencionista deste projeto médico, não se pode negar o
brilhantismo, a coragem e a originalidade deste fundador da psiquiatria
brasileira.
Ana Maria Galdini Raimundo Oda e Paulo Dalgalarrondo
Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp
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