Sonhos de uma rainha frustrada


Ao ver sua família aprisionada por Napoleão, Carlota Joaquina planejou assumir todo o Império espanhol no globo. Os inimigos eram maiores

Após sua aclamação, representada na litogravura de Thierry Frères, D. João VI governou vastos territórios a partir do Rio de janeiro. Na mesma época, Carlota almejou governar, da América, as terras espanholas.

Imagine Carlota Joaquina de Bourbon e Bragança como rainha do Império espanhol, governando-o a partir da cidade de Buenos Aires. Sob seu poder estariam áreas tão distantes como ilhas do Caribe, os Andes e a Califórnia – domínios da Espanha nas primeiras décadas do século XIX. Se hoje a hipótese soa improvável, em certo momento Carlota não apenas a imaginou, como tentou colocá-la em prática.

Após Napoleão Bonaparte invadir Portugal, foi a vez de a casa real espanhola sofrer o impacto do expansionismo do imperador francês no continente europeu. Os Bourbon chegaram a cogitar fugir para o México. Pensavam em repetir a estratégia da família real portuguesa que veio para a América. No entanto, não lograram êxito. Foram aprisionados por Napoleão, que estabeleceu como rei espanhol o seu irmão José Bonaparte. Entre 1808 e 1814, a Espanha enfrentou uma violenta guerra civil. De um lado, os favoráveis a Napoleão, do outro, os fiéis aos Bourbon, ou seja, ao núcleo familiar do qual Carlota Joaquina era originária.

Se já ficara inconsolável por ter de morar no Brasil, ainda mais arrasada deve ter se sentido Carlota ao receber a notícia de que seus pais e irmãos estavam nas mãos de Napoleão. O fato repercutia em todo o Império espanhol: com o rei da Espanha preso, quem administraria as distantes Montevidéu, Manila (nas Filipinas) e Havana? Lima, Santiago e Bogotá ficariam ao lado de José Bonaparte ou daqueles que, na Europa, lutavam contra os franceses? Os governos das Américas poderiam ainda se aproveitar da crise para buscar caminhos próprios, independentes da Espanha.

No meio dessa série de interrogações e possibilidades, emergiu mais uma: Carlota Joaquina, princesa do Brasil, de seu forçado exílio tropical, ficaria responsável pelos territórios espanhóis em todo o globo. Se D. João governava o vasto Império português a partir do Rio de Janeiro – lembrando que os domínios do príncipe englobavam áreas como Macau (China), Goa (Índia) e Luanda (Angola) – por que não poderia Carlota fazer o mesmo em relação às possessões dos Bourbon?

Para que esta saída se concretizasse, a esposa de D. João mostrou mais uma vez sua veia política, iniciando articulações para governar as áreas que outrora estavam sob o controle do pai. Carlota trabalhou não apenas para impedir a expansão napoleônica, mas também para repeli-la do reino em que nascera, fosse através de articulações políticas, fosse financiando os possíveis partidários dos Boubon com bens pessoais. A princesa passou a comunicar-se com diversas lideranças políticas na Espanha e nas Américas. Entre elas, vários expoentes políticos de Buenos Aires, que desejavam levá-la para a cidade, como ManuelBelgrano, Juan José Castelli, Nicolás Rodrigues Peña e Hipolito Vieytes. Como o Rio de Janeiro havia recebido, pouco antes, o príncipe regente português, os buenairenses desejavam contar com a única Bourbon que estava livre do jugo dos Bonaparte. 

Mas o projeto de Carlota esbarrava em outros interesses e na insegurança generalizada daquele momento. Ninguém sabia o que viria a ocorrer com a família real espanhola. Seus membros poderiam até mesmo ser assassinados por Napoleão. Temia-se, caso Carlota tomasse para si o controle dos territórios dos Bourbon, uma nova União Ibérica, em virtude do seu matrimônio com D. João. Entre os antagonistas desta possibilidade estavam nada menos do que Inglaterra e França – afinal, o surgimento de uma nova potência obviamente desagradava aos dois protagonistas da política europeia, e repercutia em todo o mundo.

Setores da resistência espanhola na Península Ibérica e seu representante no Brasil, o marquês de Casa Irujo, destacado pela Junta Central da Espanha para atuar politicamente na corte de D. João a partir de 1809, também eram contra a nova junção das coroas ibéricas. Os espanhóis se preocupavam com uma possível preeminência lusa nesta nova liga, sob o comando de D. João. Se nos séculos XVI e XVII a união entre Portugal e Espanha submeteu a coroa portuguesa à cabeça dos reis Felipes e o centro de decisões do Império português deslocou-se para Madri, nos tempos de Carlota a situação poderia se inverter. O ainda português Rio de Janeiro talvez se tornasse, além da capital dos domínios dos Bragança, também a do Império dos Bourbon.

Ainda havia inimigos na corte portuguesa trabalhando continuamente nos bastidores políticos, com intrigas palacianas, contra a princesa. Seu principal rival era D. Rodrigo de Souza Coutinho, o conde de Linhares, “braço direito” de D. João. O conde tinha estreitas ligações com o embaixador inglês que vivia no Rio, Lord Strangford. Estabelecia-se, portanto, uma intrincada rede de articulações e disputas políticas envolvendo setores das monarquias portuguesa e inglesa, esta última a principal rival de Napoleão.

Como se vê, os inimigos de Carlota eram variados e poderosos, e tiveram êxito em frustrar suas pretensões. D. João impediu o plano da esposa de ir para o Prata. Na Península Ibérica, Carlota não conseguiu apoio para representar seus parentes aprisionados. Vários de seus partidários na América começaram a abandoná-la, como em Buenos Aires, onde antigos aliados aderiram à Revolução de Maio de 1810, um projeto buenairense de autogoverno e de controle de territórios que hoje correspondem ao Paraguai, ao Uruguai e a partes da Bolívia. Mais uma vez o poder político passou por perto e flertou com a princesa, esvaindo-se antes de chegar às suas mãos.

Na outra margem do Prata, onde se encontra aquele que hoje é o Uruguai – e que na época se chamava Banda Oriental – o líder militar José Artigas aliou-se aos portenhos do movimento de maio. Esta ação atrapalhou ainda mais os planos de Carlota, pois tornou a questão platina bem mais complexa. Artigas conquistara o interior oriental e encontrava-se na iminência de invadir Montevidéu. Só não o conseguiu porque Francisco Javier deElío, representante da Espanha no Prata, pediu socorro a D. João.

O príncipe invadiu a Banda Oriental, argumentando que o fazia para proteger parte dos domínios americanos dos seus parentes espanhóis e que, futuramente, iria devolvê-los aos familiares da esposa. Como marido, D. João chamava para si a responsabilidade da defesa do território platino – providência conveniente em relação ao projeto português de estabelecer seus limites americanos no Prata. Por mais que D. João desejasse controlar o que é hoje o Uruguai, a ocupação foi curta, de 1811 a 1812, inclusive pela pressão política inglesa, contrária à permanência lusa.

Enquanto D. João buscava assenhorar-se das terras dos Bourbon, Carlota assistia, do Rio de Janeiro, às múltiplas direções políticas que os domínios de sua família tomavam. Na Península Ibérica, a guerra contra Napoleão continuava a mobilizar portugueses, espanhóis e ingleses contra os franceses. Nas Américas, segmentos da sociedade mantinham-se fiéis à Espanha, como Lima, Santiago e México, enquanto em Quito, La Paz e Caracas buscava-se o autogoverno.

Para Carlota restavam as melancólicas lembranças da possibilidade de ter tido um dia a coroa espanhola para si. Quando, alguns anos mais tarde, em 1818, tornou-se rainha de Portugal graças à coroação do marido, seu poder de atuação era reduzido. Se a coroa portuguesa foi-lhe dada justamente no seu desterro nas Américas, das Américas Carlota assistia amargurada ao crepúsculo do outrora esplendoroso Império espanhol.

Fábio Ferreiraé professor da Universidade Federal Fluminense e autor da tese “A trajetória político-militar de Carlos Frederico Lecor: das guerras napoleônicas à criação da República Oriental do Uruguai (1807–1828)”, (UFF, 2012).

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