Esperança por dias melhores



Ana Maria Machado, atual presidente da ABL [Foto: Divulgação / Bruno Veiga]


Em novo livro para jovens, Ana Maria Machado aborda o século XVII, e o encontro entre as três culturas que formaram o Brasil



Qual é o desafio para uma autora que já vendeu mais 18 milhões de livros, vivendo num país como o Brasil, em que as tiragens iniciais das editoras giram em torno das poucas milhares? O que escrever quando já se publicou mais de cem livros, em vários países, tendo inclusive recebido o Prêmio Hans Christian Andersen – o mais prestigioso da literatura infantil –, em 2000? Como continuar, quando se chegou, não apenas à Academia Brasileira de Letras, mas à sua presidência, se tornando a segunda mulher à frente da ABL em toda a sua centenária trajetória? A resposta de Ana Maria Machado foi simples: escrever. Sem pensar nas suas consequências, e na responsabilidade que ela carrega sobre os ombros. O resultado mais recente dessa filosofia de vida é o romance juvenil e histórico que ela lança agora, Enquanto o dia não chega.

“O que me leva a escrever é a vontade de contar uma história e explorar a linguagem. Tudo o mais ocorre no processo, à medida que vão surgindo os personagens e situações, a partir da visão de mundo que tenho”, diz a escritora, em entrevista, negando qualquer caráter utilitarista de sua literatura.

Se o resultado desse trabalho puder ser utilizado pelas escolas como forma de contextualizar o período, melhor ainda. EEnquanto o dia não chega serve bem a esse propósito. É um livro cujos protagonistas são dois irmãos portugueses no século XVII, Manu e Bento, que vêm para o Brasil e fazem amizade com um garoto negro africano, que virou escravo aqui, Ondjigi, e um menino indígena, Caiubi, numa luta em conjunto por liberdade. A dupla de portuguesinhos chegam aqui após passarem por privações e sofrimentos em um Portugal assolado pela peste. Já no Brasil, percebem que a terrona tem problemas bem diferentes daqueles que enfrentavam na terrinha, e decidem ajudar no que puderem, tanto os negros quanto os indígenas.

“Não quero incentivar leitor a nada. Mas eu sonho sempre com um mundo melhor e me manifesto por isso (agora, por exemplo, ando me manifestando sobre a polêmica das biografias). O que escrevo reflete isso. E acho que o mundo melhora, ainda que lentamente (não achamos mais normal que gente seja mercadoria, por exemplo)”, opina Ana Maria.




Contexto é um ponto forte no livro em questão. Apesar de ser uma obra voltada para o público juvenil, sem grandes mergulhos nos dramas dos personagens, Ana Maria não se furtou a abordar assuntos nem sempre simples de se conversar com os mais jovens. No caminho dos irmãos Bento e Manu de Portugal ao Brasil, ela fala sobre como era o poder religioso no período, a sombra da Inquisição, a peste que matou os demais familiares dos dois, o absolutismo, entre outros assuntos. Em determinado momento chega a ser até didática, mostrando qual seriam os assuntos comuns dos portugueses da elite da época: “Os dois homens foram mudando de assunto e começaram a então a falar de coisas sérias, de delitos, e suas punições, de dificuldade de mão-de-obra nas colônias, de exportação, de engenhos de açúcar, de trabalho escravo, de tráfico de africanos, de feitorias de pau-brasil”.

Além disso, ela também fala sobre a poligamia de europeus, quando vinham para o Brasil, e também sobre como a prática da escravidão era comum entre os povos africanos.

“Não creio que exista qualquer tema tabu para jovens. É sobretudo uma questão de linguagem. Mas não me sinto à vontade escrevendo para eles com um tom niilista, de desespero sem saída”, argumenta Ana Maria. “A promiscuidade e a escravização são fatos reais que merecem nossa reflexão. Para isso, primeiro têm de ser conhecidos. E nem sempre os livros didáticos falam neles.”

O livro começou a ser criado há cerca de cinco anos. Ana, que já tinha escrito outras obras históricas para adultos, como, por exemplo, O mar nunca transborda, ou para jovens, com Do outro mundo, disse que estava em Lisboa, por outros motivos, mas decidiu fazer pesquisa para esse livro. “Eu queria verificar distâncias a percorrer a pé em Lisboa, sensações de escuridão e umidade em igrejas de pedra - como a Sé - conhecer um pouco de alfareria [produção de objetos com barro ou argila], azulejaria, fabricação de cerâmica, porque achava que isso ia entrar no livro.” O que acabou acontecendo. Da África, onde se passa um bom pedaço do livro, com a história da família do menino Odjigi, Ana Maria afirma que já tinha em si havia muito tempo.

“Passei mais de um mês em Angola nos anos 80, e andei muito pelo interior. E já tinha lido todo o [historiador] Alberto da Costa e Silva, e autores africanos de Angola, Moçambique, Nigéria (como Chinua Achebe). E autores não africanos que viveram na África com amor pela sua paisagem e sua gente – como [o escritor brasileiro] Antonio Olinto ou [a dinamarquesa] Karen Blixen”, explica, deixando claro que sua ligação com o continente vai além da literária.

No meio dos deslocamentos das três culturas no que viriam a formar o Brasil, principal mote de Enquanto o dia não chega, há sempre um sentimento de esperança permeando toda a narrativa, que pode, inclusive, ser entendido desde o título do livro. Seja pela luta contra as injustiças, seja pelos estratagemas para conseguir libertar escravos, seja pelo olhar inocente, e nada carregado de preconceitos dos jovens protagonistas.

“O livro não é uma obra de História. Não tem compromisso de contar fatos historicamente verdadeiros, nem descrever situações exatamente como eram. Mas procura, ao contar um enredo, fazer o leitor viver emoções como se vivesse em outro tempo, entender outra época, se transportar. E eu acredito na esperança de que um dia melhor pode chegar, e vale a pena trabalhar para isso. Mesmo que a gente (como os personagens do livro) não chegue a ver esse dia chegar.”

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