Bandido bom é bandido... Oi?

Quando a violência urbana chega ao limite do tolerável, ecoa em alguns setores da sociedade o grito histérico da ignorância, que contribui para gerar ainda mais brutalidade. “Educação é aquilo que a maioria das pessoas recebe, muitos transmitem e poucos possuem” (Karl Kraus)


Existem dois tipos de estúpidos, de acordo com o filósofo esloveno Slavoj Žižek. O primeiro é o sujeito superinteligente que simplesmente não compreende muito bem a realidade para além da obviedade literal. Ele consegue entender a situação do ponto de vista lógico, simplesmente ignora a existência de regras sociais implícitas num certo jogo linguístico. Suponham, para ilustrar a ideia, alguém respondendo com sinceridade a pergunta: tudo bem? O segundo tipo é aquele perfeitamente capaz de se identificar com o senso comum.

Alguém que encontra a correspondência absoluta entre um dado de identificação social e si mesmo. Trata-se do sujeito que, sem qualquer constrangimento, absorve discursos, vocabulários, títulos e funções terceirizados, e passa a reproduzi-los como opiniões autenticamente próprias. O perfeito burocrata, por exemplo. Algo muito próximo do que Sartre chamou de má fé. A fuga para o “em si”, ou melhor, uma estratégia frustrada de fugir da angustia da decisão recolhendo-se na insignificância de uma vivencia terceirizada. 

Se você não se enquadra em nenhuma das duas categorias, provavelmente já percebeu onde quero chegar. Não se sabe ao certo o autor ou mesmo quando começou a circular a popular expressão “bandido bom é bandido morto”. Lembro ter escutado a primeira vez no começo dos anos 90. Naquela altura, ela já era repetida pelo mesmo perfil dos que hoje gostam de repeti-la: sujeitos com muita pose e alguma limitação cognitiva. Ela foi francamente proclamada em todas as ocasiões onde a violência urbana pareceu ter chegado ao limite do tolerável.

Nessa semana, graças à divulgação de boçalidades na internet (principalmente nas redes sociais), a frase voltou, acompanhada dos muitos elogios ao grupo de “motoqueiros” que resolveu “fazer justiça” ao prender um “pivete” pelo pescoço em um poste no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. O adolescente de 15 anos cometia crimes na região – ele tinha ficha na polícia, já havia praticado dois furtos e sido autuado também por agressão. Na última segunda (3), o rapaz foi surpreendido por um grupo de, segundo ele, 30 homens musculosos, quando andava por uma das ruas do bairro. Ele e um amigo foram espancados pelo grupo e acabou preso, nu, pelo pescoço, em um poste, por uma tranca de bicicleta.

Violência por violência

A grande maioria dos defensores dos “justiceiros de moto” -- como teriam se intitulado na noite da agressão -- afirma que chegou a hora de fazer justiça, que a ineficiência secular da policia em coibir esse tipo de delito, ou o aparecimento desses assaltantes, é tão flagrante que a única saída é maior rigor. Sugerem, entre outras coisas, que as leis sejam mais duras e que a maioridade penal seja reduzida. Normalmente é prudente evitar generalizações, mas nesse caso é impossível. Estamos tratando de um conjunto de indivíduos arrebanhados por um mesmo discurso superficial, felizes por encherem o peito e repetirem a fatídica sentença como se isso os dignificasse pro si só como autoridades capazes de discernir entre bandidos e gente do bem. Gente que, de fato, está convencida de que complexas relações sociais possam ser reduzidas a essa dicotomia simplista. 

Não bastasse o orgulho ingênuo de se sentir grandioso por repetir frases de efeito, a premissa é absolutamente equivocada. Em primeiro lugar, a grande maioria dos gênios que assim “pensam” se coloca contra os bandidos em oposição a uma esquerda multiculturalista que abraça o criminoso. Como se a dialética da violência fosse resumida por uma dualidade de tal natureza. Como lembra Žižek, não existem apenas respostas erradas para os problemas, mas perguntas erradas. E quando colocado de forma equivocada, o problema jamais encontrará qualquer resposta coerente. Acho que não preciso perder meu tempo aqui explicando porque a escolha nessa história não é atacar ou defender algum delinquente. Se alguém te disser algo como: tem pena? Leva pra casa – não diga nada, não alimente o animal. Apenas saiba que está falando com alguém com problemas de natureza moral e cognitiva.

Em segundo lugar, convém lembrar os mais entusiasmados que protelar tolerância zero não corresponde ao que fizeram os países tomados como exemplares por essa turma. Holanda ou Suécia, que sistematicamente vêm reduzindo sua população carcerária, jamais adotaram medidas de tal natureza. Eu duvido que os defensores de leis mais rígidas no Brasil sejam capazes de citar um único país cuja violência fora resolvida pela reação enérgica da polícia e de suas leis. Os Estados Unidos, que tomaram esse caminho, hoje contam com a maior população carcerária do planeta. Além disso – sejamos honestos - bandido bom é bandido morto já foi incorporado como diretriz informal da policia há muito tempo. A polícia americana pode ser bastante truculenta, mas não é páreo para a paulista, que mata mais e com uma população oito vezes menor. 

A PMERJ não fica atrás. Em 2013 a OAB/RJ lançou a campanha “Desaparecidos da Democracia” no qual mostram que mais de dez mil pessoas foram mortas sob suspeita de confronto com a polícia entre 2001 e 2011. Vale lembrar que oconceito de confronto para a PM é bastante amplo. A opção por mais truculência, mais violência e intolerância não tem ajudado nem os próprios policiais, já que, em média, a chance de um policial morrer no Brasil é três vezes maior que em outros países. Ou seja, essa estratégia de fazer e acontecer pelas armas talvez tenha um grande impacto na boca de políticos que fingem estar fazendo alguma coisa quando mandam a policia subir o morro para matar pobre ou de machões justiceiros que tentam convencer seu nicho da própria masculinidade, mas certamente não anda protegendo nem cidadão, nem o policial.

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