Dirigentes do PCdoB mortos pelo Exército na chacina da Lapa, em dezembro de 1976. “A tortura não é desumana”, escreveu o filósofo Jean-Paul Sartre. “É simplesmente um crime ignóbil, crapuloso, cometido por homens (…). O desumano não existe, salvo nos pesadelos que o medo engendra”. Instrumento extremo de coerção e extermínio, a tortura foi o último recurso da repressão política que o Ato Institucional no 5, editado em 1968, libertou das amarras da legalidade.
Foi com a tortura que a ditadura instalada pelo golpe militar de sessenta e quatro ganhou uma face violenta não mais apenas institucionalmente – com cassações e banimentos de opositores ao regime, iniciados já em 1964 – mas também violenta na prática e na forma. Seu pretexto foi a pressão ocorrida à esquerda e à direita: a luta armada das organizações terroristas de combate à ditadura, de um lado, e os militares linha-dura, de outro.
“A tortura é um crime demasiadamente humano”, reforça a psicanalista Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, em seu livro Tortura, lançado recentemente pela Casa do Psicólogo na esteira dos 50 anos do golpe. Nele, a autora – ela própria uma sobrevivente dos anos de chumbo – tenta explicar esse crime à luz da história e da psicanálise. Ajuda a entender os fundamentos da violência, da destrutividade e da maldade presentes nas relações entre os humanos. Segundo ela, “um ato humano, cruel e degradante, e que atinge ao mesmo tempo a humanidade à qual o torturador também pertence”.
(Maria Auxiliadora Arantes começou sua militância na Ação Popular, a AP, em 1963, foi presa entre 1968 e 1969, juntamente com os dois filhos que, na época, tinham idades abaixo de quatro anos, e mais tarde tornou-se uma ativa dirigente e militante da luta pela anistia no Brasil.)
Humano e “normal”
O livro da psicanalista reforça uma tese sobre a qual se debruçaram Sartre, a também filósofa Hannah Arendt, e historiadores da ditadura militar brasileira, como o jornalista Elio Gaspari: diferentemente do que se pode pensar, a tortura é quase sempre praticada por indivíduos absolutamente “normais”, plenamente conscientes de seus atos, capazes de se tornarem técnicos da violência. Raramente são figuras sádicas e perversas.
O torturador maluco, vítima de uma perversão, é no máximo produto da fantasia. Para uma ditadura, funciona como um álibi. Permite-lhe ter à mão a tese da insanidade do agente para salvar a honra do regime se algum dia a oposição provar os suplícios e identificar os torcionários.
Apesar disso, segundo a psicanalista, o torturador exerce a crueldade de forma extrema. Está consciente do que faz e por isso torna-se responsável pelo crime cometido. É uma boa conclusão a compartilhar com os militares – da ativa ou da reserva – que ainda hoje mantêm silêncio sobre a ditadura instalada em 1964; com aqueles que se recusam a abrir informações que levem ao paradeiro dos desaparecidos políticos; e com os militares que ainda se guiam pelos mesmos manuais da Escola Superior de Guerra, segundo os quais o golpe foi uma revolução para salvar o país do comunismo.
“O que quer o torturador?”, pergunta Maria Auxiliadora em seu livro. “Ao sustentar seu anonimato, e impor o silenciamento, instaurando o fazer calar, o torturador escapa do julgamento e da punição, e torna-se um facilitador para que a tortura mantenha-se. Prestou seu serviço ao poder político, econômico, religioso, e, nesta condição, incorporou a função de manus longa do poder, usufruindo a impunidade”.
No local da tortura, lembra ela, o torturador “exerce seu poder sobre um semelhante assimetricamente imobilizado, vedado, amordaçado e nu”. Ele quer a confissão mas também a submissão do torturado. Quando a vítima se submete, conclui-se um processo em que a confissão é um aspecto irrelevante. O preso, na sala de suplícios, troca seu mundo pelo do torturador. A vítima faz mais do que dar uma informação ao carrasco, ela passa a reconhecer nele o senhor da sua voz.
Em A ditadura escancarada, segundo volume da sua espetacular série sobre o regime militar (agora em versão revista, ampliada e melhorada pela editora Intrínseca), Elio Gaspari lembra: “O sofrimento começa ou para, aumenta ou diminui, pela exclusiva vontade do torturador. Ele tanto pode suspender uma sessão para dar a impressão de que teve pena do preso quanto pode avisar que vai iniciar outra, sem motivo algum, para mostrar-lhe a extensão do seu poder”.
Na nova edição, Gaspari cita a presidente Dilma Rousseff, a Estela da VAR-Palmares: “A pior coisa que tem a tortura é esperar, esperar para apanhar”. E a onipotência de um torturador: “Que Deus que nada, porque Deus aqui é nós mesmo”.
Como afirma Gaspari, a história ensina que a tortura é filha do poder, não da malvadeza. A natureza imoral dos suplícios, lembra ele, desaparece aos olhos daqueles que os fazem funcionar, confundindo-se primeiro com as razões de Estado e depois com a qualidade do desempenho que dá às investigações. “Confissões não se conseguem com bombons”, argumentava o bispo de Diamantina, d. Geraldo Proença Sigaud.
Em outras palavras, o que torna a tortura atraente é o fato de que ela funciona, e muito:
O preso não quer falar. O preso apanha. O preso fala.
A teoria da funcionalidade levou o regime a defender a ação policial da ditadura como resposta adequada e necessária à ameaça terrorista. No raciocínio justificativo do general Ernesto Geisel, em depoimento aos historiadores Maria Celina d’Araújo e Celso Castro: “Era essencial reprimir. Não posso discutir o método de repressão se foi adequado, se foi o melhor que se podia adotar. O fato é que a subversão acabou”.
Não há dúvida de que acabou de fato: as principais organizações da luta armada foram liquidadas em pouco tempo, com seus militantes presos, mortos ou desaparecidos. Chefe do Codi do Rio nos anos 70, o general Adyr Fiúza de Castro reconheceu o quão desigual era aquele combate: “Foi a mesma coisa que matar uma mosca com um martelo-pilão”.
Em números e fatos: a destruição das organizações armadas começou em julho de 1969; em junho de 1970 todas as organizações que algum dia chegaram a ter mais de 100 militantes estavam desestruturadas. O porão garantiu o sucesso da “tigrada”: segundo Elio Gaspari, entre 1964 e 1968, foram 308 denúncias de torturas apresentadas por presos políticos às cortes militares. Durante o ano de 1969 elas somaram 1.027. Em 1970, 1.206. De 1964 a 1968 instauraram-se 60 inquéritos militares contra organizações de esquerda; só em 1969 abriram-se 83.
Antes que as gralhas gritem, convém admitir: as ações da esquerda armada também fizeram vítimas. Mas não tiveram nem de longe a mesma dimensão dos assassinatos e da tortura praticada nos porões.
Por que os militares de hoje não admitem os crimes cometidos pela ditadura?
De um torturador para uma jovem: “Você vai sofrer como Jesus Cristo”
Tortura, o livro, enxerga o crime com um olho na psique do torturador e outro na história. Detalha, por exemplo, a barbárie nazista, as torturas da Inquisição e a ação dos franceses na Guerra da Argélia, que se tornaram uma espécie de polo aglutinador da violência política nas décadas seguintes, usada principalmente pelos EUA na guerra do Vietnã e pelos militares latino-americanos que, com amplo apoio dos EUA, instituíram ditaduras civis-militares na década de 1960.
Maria Auxiliadora baseia-se no depoimento do general Paul Aussaresses que, na Argélia, foi um dos comandantes do destacamento de paraquedistas (foi o braço direito do comandante dos paraquedistas, general Massu). Aussaresses, desde meados da década de 1950, a tortura e as execuções sumárias faziam parte da política de guerra francesa, e chegou a vangloriar-se por elas.
Aussaresses se instalou na Carolina do Norte (EUA) onde, disse, “ensinava as técnicas que havia aprendido durante minha carreira”. Esteve no Brasil em 1973, a convite da ditadura, tendo sido adido militar à embaixada da França. Um de seus amigos mais íntimos era o então coronel João Batista Figueiredo, do Serviço Nacional de Informações, o mal afamado SNI. Além de Figueiredo – que viria a ser o último general presidente da ditadura de 1964 – o general francês também conviveu com o delegado Fleury, um dos facínoras do regime. E deu aulas de tortura e desaparecimento de opositores políticos em Brasília.
Depoimento
Para quem não tem o coração empedernido diante do assunto da tortura, o livro de Maria Auxiliadora – assim como o de Elio Gaspari – expõe, com riqueza de detalhes, depoimentos de torturados. Ou recolhidos pela própria autora ou reproduzidos de depoimentos públicos.
A coluna escolhe um deles, o de Alípio Freire, militante preso aos 23 anos de idade no domingo 31 de agosto de 1969, data em que o general Arthur da Costa e Silva sofreu o derrame cerebral que o tiraria do poder logo em seguida. Foi preso sem mandado judicial e mantido em cárcere clandestino quando chegava a uma casa no Bairro da Previdência, em São Paulo. Quinze homens o prenderam, todos integrantes da Operação Bandeirante, a temida Oban, núcleo do Exército contra a luta armada financiado por empresários.
O depoimento sobre o que sofreu nas mãos daqueles homens é um documento público disponível nos arquivos do Ministério da Justiça. Acima de tudo, testemunha a tortura como prática do Estado brasileiro e do governo instalado cinco anos por meio do golpe militar (com amplo apoio civil) que derrubou o então presidente João Goulart.
Alípio escreveu:
“Um dos meus sequestradores segurava a ponta da corda que me prendia os pulsos (como se me levasse por uma coleira) e um segundo mantinha o cano de uma pistola automática, engatilhada, encostada em minha nuca. Assim, e acompanhado de uma comitiva de uma meia dúzia de membros daquela equipe, me retiraram da casa pelo quintal dos fundos, (…) e sair pela rua de trás, onde fui embarcado numa caminhonete veraneio C-14. (…) Fui conduzido (sempre encapuzado) ao quartel do Batalhão de Reconhecimento Mecanizado – Rec-Mec, do II Exército. Era nesse quartel que, então, funcionava a Oban, centro de torturas e interrogatórios de revolucionários e outros opositores do regime.
(…) Despido, fui alçado no pau de arara. Pendurado, amarraram-me um fio descascado no artelho maior esquerdo e, com outro polo, iam percorrendo várias partes do meu corpo: ouvidos, boca, língua, narinas, cantos dos olhos, mamilos, todo o tórax (com uma atenção especial para a região onde se localiza o coração), pernas, braços, umbigo, pênis, testículos e ânus. A corrente elétrica era puxada de uma tomada (naquele dia, 110 volts). Concomitantemente, além de murros, tapas e “telefone”, era surrado com bastões e com uma tira de lona dobrada e molhada. Vez por outra, derramavam água ou algum refrigerante sobre todo o meu corpo, com o objetivo de potencializar os efeitos dos choques, aumentando a condutibilidade da corrente. Nessas ocasiões, fizeram várias vezes escorrer para dentro das minhas narinas o líquido (ora água, ora refrigerante) com que me molhavam o corpo, provocando fortes afogamentos. Em determinado momento – uma vez que não obtinham informações – disseram que iriam buscar minha mãe para torturar.
(…) Numa tarde (…) conheci dois novos instrumentos de tortura, aos quais fui submetido: a cadeira do dragão, chamada também de trono do dragão ou de “cadeira elétrica”, e o choque de televisão. (…) O trono do dragão era uma cadeira grande, de estrutura de madeira (caibros) e com assento, encosto e parte superior dos braços de metal; uma trava móvel entre as duas pernas dianteiras permitia que as pernas do torturado fossem imobilizadas e presas para trás, na altura das canelas; nos braços (da cadeira), tirantes – com os quais eram atados e também imobilizados, pelos pulsos, os nossos braços. (…) Utilizado fundamentalmente para torturas com choques elétricos, no trono do dragão voltei a experimentar as correntes puxadas de tomadas e de um telefone de campanha. A novidade veio em seguida: plugaram a cadeira num aparelho de televisão que emitia violentas descargas.”
Fonte: pensata
Por Rodrigo de Almeida
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