O Brasil republicano ainda sonha com o imperador


Ao participar de um bate-papo com leitores no começo desta semana, em Teresina, alguém repetiu uma pergunta que me tem acompanhado com insistência desde que lancei o livro 1889:

– O Brasil seria melhor como monarquia ou como república?

Uma resposta resumida poderia ser: nem uma coisa nem outra. Nosso grande desafio não está relacionado à forma ou ao nome do regime de governo, mas à imensa e histórica dificuldade que nós, brasileiros, temos demonstrado em nos organizar e pactuar nosso caminho em direção ao futuro. Hoje está relacionado principalmente a uma certa relutância em aceitar a nossa responsabilidade pela construção desse futuro em um ambiente de democracia. “O brasileiro ainda tem uma perspectiva monárquica do poder porque espera muito do Estado, mas não participa de nada”, afirmei em Teresina. “Temos de assumir, de fato, a nossa condição democrática e republicana e entender que, sem participação política, não há solução possível para os nossos problemas.”

O Brasil é um país de herança mais monárquica do que republicana. Foi a coroa portuguesa que se responsabilizou pela colonização, pela organização e pela ocupação do território brasileiro nos três séculos que precederam a chegada da corte de Dom João ao Rio de Janeiro, em 1808. Promovido a Reino Unido em dezembro de 1815, o Brasil se manteve como monarquia por mais 74 anos, até a Proclamação da República em 1889. Foi o único país da América a ter dois reis e dois imperadores (Dona Maria I, a rainha louca, até março de 1816, data de sua morte; e Dom João VI, rei até a Independência, em 1822; Dom Pedro I, imperador até 1831; e Dom Pedro II, imperador até 1889, incluindo-se o período da Regência, de 1931 a 1840). Ao longo de quase todo o século 19, o Brasil funcionou como uma “flor exótica” nos trópicos – uma ilha monárquica cercada de repúblicas por todos os lados. A República é, portanto, um conceito relativamente recente na nossa história.

Monarquia e república, no entanto, compartilham um traço que marcou profundamente a trajetória brasileira. É a construção nacional centralizada, forte, às vezes autoritária, de cima para baixo, sem que a imensa maioria da população pudesse ou fosse chamada a participar das escolhas. Da chegada da corte ao Rio de Janeiro até a queda da monarquia, coube a uma pequena e relativamente bem educada elite imperial organizar e administrar o país, incluindo um esforço notável e bem sucedido de manter a integridade territorial tantas vezes ameaçada até meados do século 19. O ambiente da corte no Rio de Janeiro e em Petrópolis tentava imitar a estética e os rituais de Versalhes e Viena, mas a realidade nas ruas era bem diferente, de escravidão, pobreza, analfabetismo e latifúndio. Portanto, um oceano de não-cidadãos, brasileiros não autorizados e sequer capacitados a participar da construção nacional.

A república chegou em 1889 acenando com mudanças nesse cenário, mas falhou no cumprimento de suas promessas. Os propagandistas republicanos defendiam, entre outras coisas, respeito às liberdades individuais e ampliação do direito do voto. O novo regime, porém, se impôs pela força das armas e logo se converteu em ditadura sob Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, o “Marechal de Ferro”. Os civis retomaram o poder com Prudente de Morais e Campos Salles, mas a equação política da Primeira República era muito parecida com a do império. Na chamada república dos fazendeiros – também conhecida como “do café com leite” ou “dos governadores” – a mesma aristocracia rural que mandava na monarquia conduziu os destinos do novo regime. A fraude eleitoral e o voto de cabresto, características da política imperial, se mantiveram impávidos até 1930. O índice de participação eleitoral foi mínimo, inferior até ao dos últimos pleitos do período monárquico.

A república que se seguiu à Revolução de 30 empenhou-se no combate ao coronelismo e ao voto de cabresto, mas manteve ainda um traço de afinidade com a monarquia que a precedeu: a condução forte e centralizada das decisões. Nesse aspecto, poderia ser definida como uma “república monárquica”. Aos “imperadores republicanos” que se sucederam no poder no meio século seguinte coube a tarefa de continuar a organizar e controlar tudo de cima para baixo, exatamente como na época da monarquia. O caso mais exemplar é o de Getúlio Vargas, um genuíno “imperador republicano” durante o Estado Novo, entre 1937 e 1945, empenhado em industrializar o país e reformar leis e costumes (incluindo a criação da CLT e a organização dos sindicatos) com o Congresso fechado, a imprensa sob censura e os opositores na cadeia. A situação semelhante se repetiu entre 1964 e 1984. Os generais-presidentes desse período eram, uma vez mais, “imperadores republicanos fardados” que, tanto quanto Getúlio, bebiam no ideario positivista de August Comte, defensor de uma “ditadura republicana” forte, verticalizada e capaz de tutelar o regime até que o restante da população estivesse habilitado a participar das decisões.

A democracia republicana brasileira é, portanto, uma experiência muito nova nessa história de perfil autoritário. Foi exercida de fato apenas entre 1946 e 1964 e de 1984, ano do fim do Regime Militar, até agora. Somados esses dois períodos, em quinhentos anos de história o Brasil não chega a ter meio século como nação democrática e republicana.

A Campanha das Diretas Já, em 1984, pode ser considerada uma segunda proclamação da república. Desta vez, não mais por um general a cavalo impondo a mudança do regime, como em 1889, mas pelo povo nas ruas pedindo o direito de votar. Em 1988, como decorrência da redemocratização, o Brasil promulgou uma nova constituição republicana. E cinco anos mais tarde promoveu um peculiaríssimo plebiscito (prometido 104 anos antes, na noite de Quinze de Novembro de 1889, pelo professor e tenente-coronel Benjamin Constant) no qual nós, brasileiros, decidimos nas urnas que o país seria efetivamente uma república e não uma monarquia.

Desde então a democracia republicana tem sido um aprendizado lento e difícil, sujeito a algumas vitórias e também a muitas desilusões. Hoje, o inegável sentimento de frustação pode ser medido pelas manifestações de rua e pela óbvia apatia cívica que tomou conta dos brasileiros nesta véspera de Copa do Mundo. Por que é tão difícil mudar o Brasil? Somos, afinal, um povo naturalmente corrupto e violento? Por que o estado brasileiro é tão ineficiente? São perguntas que pairam no ar, permeadas por uma certa nostalgia autoritária (mais autoritária do que monárquica) que se pode observar em grupos que defendem nas redes sociais a volta de um regime forte, capaz de enfrentar todos os problemas mediante uma intervenção nas instituições e a quebra da ordem legal vigente.

No meu entender, a democracia republicana só vai se consolidar de fato na nossa história à medida em que essa fórmula de construção nacional devolver aos brasileiros os benefícios que dela esperam, na forma de mais e melhores serviços públicos, justiça e oportunidades para todos. Para que isso aconteça, no entanto, é preciso que antes o país passe por uma profunda transformação de natureza cultural.

Mesmo tendo proclamado e referendado a república e a democracia nas Diretas de 1984 e no plebiscito de 1993, os brasileiros, em geral, ainda tem uma perspectiva monárquica e autoritária do poder. Como regra, o brasileiro é avesso a qualquer forma de participação na atividade política – não participa dos partidos, dos sindicatos e das comunidades de bairro, foge ao trabalho voluntário em prol do interesse comum, não comparece às reuniões de pais nas escolas e nem mesmo às assembleias de condomínio no prédio onde mora. Vota e no dia seguinte se esqueça do nome do candidato que escolheu. Ainda assim, sem participar de nada, cobra muito do Estado, visto como o provedor absoluto de todos os benefícios sociais possíveis – saúde, educação, segurança, transporte, saneamento, infra-estrutura e até cidadania.

Essa, no meu ponto de vista, é uma herança monárquica. É a falsa noção de que os brasileiros, mesmo sem participar de nada, poderão sempre contar com a ação de um soberano sábio e magnânimo (um pai de todos, para usar uma analogia freudiana), capaz de zelar pelo bem-estar geral. Trata-se de uma perspectiva não-republicana da política e do poder, que remete aos imaginário dos tempos do imperador Pedro II, um homem austero, intelectual, amante das ciências e das artes, cuja missão seria nos conduzir a um futuro grandioso sem que os beneficiários das transformações precisassem ou pudessem dar palpites.

Outra dificuldade no Brasil de hoje está relacionada ao conjunto de aspirações e valores que projetamos na atividade política e que nem sempre está de acordo com aqueles cultivados no dia-a-dia das pessoas. O brasileiro em geral cobra do Estado padrões de honestidade, ética e eficiência que ele próprio não cultiva nas suas relações privadas. Na conversa entre amigos em uma mesa de bar, muitas pessoas às vezes pregam o voto nulo e até o fechamento do Congresso com a desculpa de que a política é por natureza uma atividade corrupta e que dela não vale a pena participar. No dia-a-dia, porém, essas mesmas pessoas jogam lixo na rua, furam fila, dirigem o carro pelo acostamento quando o trânsito está congestionado, deixam o som ligado em alto volume até de madrugada sem se importar com o sono do vizinho. E corrompem o agente público sempre que isso for da sua conveniência. Essa também é uma perspectiva não-republicana e não-democrática do poder.

É quase impossível construir um Brasil melhor em um ambiente de democracia no qual as pessoas ignoram ou mesmo desprezam o principal instrumento de transformação de que dispõem: o voto e a participação na atividade política. Em uma república democrática quem constitui o Estado não é o rei, nem o imperador e nem o ditador. São os cidadãos, ou seja, as pessoas que compõe a sociedade, chamadas a participar do processo decisório, o que inclui o exercício consciente do voto. A configuração do estado em Brasilia será sempre produto direto das escolhas que fizermos nas urnas e na prática cotidiana da política. Será também um espelho do que somos na média no que diz respeito aos nossos valores éticos e morais. Nem melhor nem pior.

Para que esse Estado reflita, de fato, nossos anseios e valores é preciso que estejamos dispostos a assumir a nossa condição democrática e republicana – o que o envolvimento na política como cidadãos em plenos direitos. O voto e a participação política são direitos pelos quais muitas gerações lutaram e sofreram até recentemente. Ignorá-los ou desprezá-los seria, portanto, um grave erro, além de uma grande injustiça para com os brasileiros que nos precederam. Botar a culpa dos problemas atuais em vilões genéricos – como “os políticos”, “as elites” ou “a mídia” – é apenas fugir à responsabilidade que a república e a democracia exigem de nós. Trata-se de um exercício estéril de auto-negação, inadmissível em um ambiente no qual, pela primeira vez em cinco séculos, todos os brasileiros estão sendo chamados a participar da construção do futuro.

O Brasil que, em estado de choque cívico, prepara-se para sediar a Copa do Mundo a partir da próxima semana é como um gigante nú que, na frente do espelho, se pergunta: Quem sou eu? E agora, para onde vou? Quem vai cuidar de mim?

A resposta para essas perguntas está na imagem refletida no próprio espelho.

Fonte: http://laurentinogomes.com.br/

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