Em abril, o Brasil ganha a primeira tradução das histórias de Sherazade traduzidas diretamente de um manuscrito árabe para a língua portuguesa.
Era uma vez um rei chamado Shahriar que descobriu que era traído por sua rainha. Não era apenas uma traição, mas uma orgia entre sua esposa, seus escravos e concubinas. Enlouquecido, Shahriar mandou matar todo mundo, pegou uma raiva danada de mulheres e resolveu descarregar seu ódio em todas elas. A cada dia (seria melhor dizer a cada noite) tomava uma nova esposa e a matava na manhã seguinte. Com o tempo, o vizir, encarregado de trazer as noivas para a alcova de Sua Majestade, não encontrava mais nenhuma candidata. Porém, para seu espanto, sua própria filha, Sherazade, ofereceu-se para casar com o rei. Mas ela tinha um plano que salvaria não só a sua vida, mas a de todas as mulheres do reino.
Esse é o início da coletânea de histórias mais famosa de todos os tempos: As Mil e Uma Noites, para alguns especialistas, o livro mais citado no mundo, depois da Bíblia. Apesar da fama, só agora a língua portuguesa terá uma tradução diretamente de manuscritos árabes. O primeiro dos cinco volumes da obra feita por Mamede Mustafá Jarouche, professor de Língua, Literatura e Cultura Árabe da Universidade de São Paulo, será lançado em abril. Até hoje, todas as edições em português, incluindo as impressas em Portugal, basearam-se em versões do francês, com consultas a traduções inglesas ou espanholas, elas próprias feitas de segunda mão.
Para realizar a versão em português, o professor Jarouche baseou-se em fac-símiles de um conjunto de manuscritos originais do século 14 que são mantidos na Biblioteca Nacional de Paris. Como o tempo foi inclemente com a papelada, além de conter erros de cópia e palavras cujo significado é desconhecido, o tradutor procurou o auxílio de quatro outras edições árabes, publicadas nos séculos 19 e 20, e manuscritos dos séculos 17 e 18.
Na verdade, a coletânea – conhecida na Europa como Noites Árabes – nunca compôs um texto único e suas diversas versões são tão antigas que seria incorreto falar em “versão original” ou em “versão completa”. Nas mais antigas, por exemplo, algumas das fábulas mais famosas – como as de Simbá, o Marujo – não estão presentes, tendo sido acrescentadas somente em compilações tardias.
A própria estrutura da obra possibilitou a introdução de novos temas e histórias. Afinal, o plano de Sherazade para não morrer era engastar uma fábula na outra, de forma a parecer que elas não tinham começo nem fim, a ponto de Shahriar ficar tão curioso que a mantinha viva para que continuasse na noite seguinte. Uma espécie de novelão das oito. Com esse formato, foi fácil que, com o tempo, outros autores criassem seus próprios “capítulos”.
A primeira referência à obra data do ano 879. Em um fragmento de papiro encontrado na Antioquia, na Síria, há 20 mal traçadas linhas que dão uma pequena pista ao mencionar um “livro que contém histórias das mil noites”. A menção à noite que falta (afinal, não seriam mil e uma?) só aparece na segunda metade do século 13, que relata a existência de um certo Kitab Alf Layla wa Layla (ou “Livro das Mil e Uma Noites” ).
O nome da obra se refere ao tempo que Sherazade passou entretendo o rei. E haja assunto (para se ter uma idéia, a maior novela brasileira, Redenção, durou 596 noites)! Nas versões “completas”, são 88 histórias principais (sem contar as historietas ou variantes) contadas em mil e uma noites. Após esse tempo e a chegada de um filho, o rei finalmente desistiu de sua vingança.
Há muitas teorias sobre a origem da obra. Uma delas é de que as fábulas teriam nascido na Índia e foram traduzidas para o pálavi. O prólogo e a história de Sherazade e do rei Shahriar têm raiz no pálavi, língua indo-européia falada na Pérsia(o atual Irã). Com a islamização da região no século 7, a coletânea teria sido traduzida para o árabe. Época em que foram acrescentadas novas histórias e as antigas foram islamizadas, ou seja, adequadas à moral do Islã. Mas não se sabe como As Mil e Uma Noites passaram da oralidade à escrita.
O prólogo, por exemplo, se passa durante o período sassânida, dinastia que governava a Pérsia antes da ascensão do domínio muçulmano. A maior parte das fábulas narradas por Sherazade, por sua vez, ocorre durante o califado de Harun Al Rashid, que morreu no início do século 9. O período de governo de Rashid (786-809) não foi escolhido por acaso. Bagdá, capital do império muçulmano abássida, era uma cidade cosmopolita que gozava de grande riqueza e concentrava uma corte de mecenas. Um cenário ideal para conspirações, intrigas amorosas e histórias fantásticas.
Como As Mil e Uma Noites é uma obra literária, não se deve esperar rigor histórico em episódios da corte de Al Rashid. Mas em pelo menos um momento há uma menção implícita a um fato real. Um homem diz a outro que deixará Basra e irá a Bagdá. O amigo o desaconselha, dizendo que a cidade é muito perigosa. Ele se refere ao período posterior à invasão mongol que ocorreu quatro séculos após a morte de Rashid. Hugalu, neto de Gêngis Khan invadiu a cidade em 1258 e a destruiu completamente. Relatos da época sugerem que mais de 800 mil pessoas morreram.
A obra era desconhecida no Ocidente até que um manuscrito foi parar nas mãos do francês Antoine Galland (1646-1715). Galland coletava moedas e manuscritos antigos para a corte de Luís XIV. Como ele dominava o árabe, interessou-se pelas fábulas e publicou o que chamou de tradução. Na verdade, o francês cortou partes do texto, inventou desfechos e adaptou-o ao gosto da época. O que os especialistas hoje consideram a pior tradução de todas foi, em 1704, um estrondoso sucesso. Até a morte de Galland, foram lançados 12 volumes. O tamanho não impediu que fossem traduzidos em diversas línguas (até em árabe, vejam só!).
O texto não provocou apenas curiosidade, mas influenciou gerações. Durante o romantismo, ganhou leitores célebres como Goethe (1749-1832), que se deixou seduzir por Sherazade a ponto de compor poemas sobre temas islâmicos em Divã Ocidental-Oriental. A “descoberta” de um Oriente fantástico e misterioso conquistou pintores e escritores europeus, como Chateaubriand, Gérard de Nerval e Eugène Delacroix. Esse mundo maravilhoso e fascinante serviu para construir uma imagem equivocada de árabes e muçulmanos que influenciou todo o pensamento ocidental a respeito do tema, nomeada pelo crítico literário Edward Said como “orientalismo”.
Quase um século após a morte de Galland, outro europeu se aventurou na tarefa de traduzir o monumental texto do árabe. O britânico Edward Lane (1801-76) passou cinco anos no Cairo, onde conseguiu um manuscrito que traduziu e publicou entre 1838 e 1841. Apesar de ser rigoroso e observador dos costumes islâmicos – suas notas de rodapé dariam um volume à parte – Lane cometeu um sério deslize. Como era um aristocrata de modos vitorianos, isto é, pudico a ponto de corar ao ler qualquer menção ao ato sexual (e o texto árabe é farto no tema, chegando a mencionar perversões, sexo grupal e outras delícias), ele mutilou tudo o que considerou obsceno. Mas avisava: “aqui suprimo uma explicação repugnante”.
A língua inglesa ganharia uma tradução maior e melhor de As Mil e Uma Noites, quando o explorador Sir Richard Burton (1821-1890) – compatriota e desafeto de Lane – tomou a tarefa para si. Conhecido por dominar mais de 30 línguas e dialetos – chegou a traduzir Os Lusíadas para o inglês – e por suas andanças pelo mundo islâmico, ele produziu uma versão de 16 volumes que inclui histórias suplementares. E Burton deu especial atenção às passagens picantes. Experiência não lhe faltou, já que havia vertido para o inglês obras eróticas clássicas como Kama Sutra. O único pecado de Burton foi usar uma edição egípcia que se baseia em um manuscrito tardio, do século 17 ou 19. Se por um lado ele acrescentou Simbá, Ali Babá e Aladim, por outro deixou de fora relatos mais antigos.
A polêmica ganhou novo capítulo com o lançamento de As Mil e Uma Noites, na tradução de J. C. Mardrus, em 1899. O imodesto francês afirmou que a sua versão era a mais completa e literal feita até então. Nem uma coisa, nem outra. Recentemente, outro francês, René Khawam, também não conseguiu unanimidade. Sua tradução lançada em 1986 suprimiu a divisão das noites, mantendo apenas as histórias. Um crime para um livro que segundo Jorge Luis Borges tem o título mais belo da literatura. E que agora ganha uma tradução digna da língua de Camões.
Arqueologia das letras
A aventura de reescrever o passado
Traduzir obras antigas é um trabalho paleográfico: decifrar a caligrafia de manuscritos pode ser um desafio. Antes da difusão da imprensa na Europa,no século 15, a reprodução de textos era feita somente por meio de cópia manual. É aí que surge a figura do copista, um sujeito que nem sempre era fiel ao que lia, às vezes não entendia o que lia e raramente tinha a letra bonita. Segundo o professor Mamede Mustafá Jarouche, uma de suas maiores dificuldades na tradução de As Mil e Uma Noites foi decifrar o que o copista queria dizer em trechos onde havia “deslizes” gramaticais. O dialeto usado no texto também dificultou o trabalho que se baseou em cópias do árabe do ramo egípcio e sírio. O professor, que morou no Iraque, Líbia e Arábia Saudita e concluiu seu pós-doutorado no Egito, teve de pesquisar palavras dialetais que há muito não são utilizadas em nenhum país árabe. “Além disso, os manuscritos estavam tão danificados pelo tempo, o que tornou a tradução de uma única frase um exercício de paciência”, diz Mamede. Mas o que fez o tradutor perder o sono foram palavras fáceis de traduzir, mas sobre as quais não se tem referências sobre o seu significado. “São termos usados para descrever objetos do cotidiano, como comidas e vestimentas”, diz. Entre elas estão dois doces chamados “castelinhos do amor” e “coma e agradeça”. “Os nomes ficaram, mas só podemos imaginar que ingredientes e sabores eles teriam.” Outro desafio foi a padronização da grafia utilizada nos nomes dos personagens. Palavras como o nome da personagem principal deveriam ser grafados como Sherazade, Chahrazad, Xahrazad, Shahrazad? O tradutor optou pela forma da convenção internacional para a transliteração de palavras árabes e dessa forma o nome passou a ser grafado como ahr¡z¡d.
O árabe, uma língua do tronco semítico, tem sons inexistentes nas línguas latinas, como as vogais longas, que devem ser pronunciadas como vogais tônicas. Mamede pesquisa a obra desde 1997. Em 2000, depois de voltar de uma temporada de estudos no Cairo, iniciou a tradução de As Mil e Uma Noites. Ele já verteu para o português obras clássicas da literatura árabe como Cento e Uma Noites: Histórias Árabes da Tunísia e Kalila e Dimna (uma versão islamizada do indiano Pañcatantra), ainda no prelo. Atualmente, divide o trabalho de tradução dos demais volumes do texto com as aulas na Universidade de São Paulo.
Saiba mais
Livro: As Mil e Uma Noites, Mamede Mustafá Jarouche (tradução), Globo, 2005
Fonte: Guia do Estudante
Por Isabelle Somma em 01/03/2005
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