Arte sedutora

“São histórias pessoais e também histórias da arte (às vezes eu não percebia a diferença)”

O Poder da Arte

Simon Schama

504 Páginas, R$ 94

Companhia das Letras


http://www.companhiadasletras.com.br/

Bem conhecido por gerações de leitores é o poder da grande literatura de transportar quem usufrui dela em longas viagens, para outras terras e outras situações. De forma análoga, a boa música tem a capacidade de suscitar no ouvinte sensações e emoções tão profundas que parece ocorrer nele uma verdadeira suspensão do tempo e do espaço. Quanto à pintura e à escultura, se formos observar os rostos da maioria das pessoas que frequentam galerias e exposições, a impressão que se tem, é que a relação com a obra de arte se processa de uma forma menos intensa, mais epidérmica ou superficial. Tanto a pintura figurativa como a abstrata, e a escultura de rebarba, em muitos casos, capturam somente poucos segundos da atenção do observador, que a esta altura não é nem mais isso, e sim mero visitante, espectador ocasional e desatento do autêntico milagre representado pela criação artística na sua frente. 

Na contramão disso tudo é que se coloca o livro do britânico Simon Schama, O Poder da Arte, (Companhia das Letras, 2010), planejado inicialmente como suporte e fio condutor para uma série de documentários para a BBC apresentados em 2006. Do autor conhecemos a capacidade de percorrer amplos campos de pesquisa e investigação historiográfica, da Revolução Francesa à Holanda do século XVII, da história dos judeus à formação dos Estados Unidos, sempre com rigor, documentação rica e estilo despojado. Como em O Desconforto da Riqueza: a cultura holandesa na Época de Ouro (1992), Cidadãos: uma crônica da Revolução Francesa (2000) e O Futuro da América (2009). Em O Poder da Arte, ele nos introduz a uma forma de olhar para a produção artística que combina a atenção profunda à obra (seja ela tela, aquarela ou mármore) com a reconstrução da jornada artística e existencial do autor, no contexto mais amplo da terra onde viveu e de suas características culturais, econômicas e político-sociais.

O volume faz isso repercorrendo as etapas da vida de oito artistas de diferentes períodos históricos, culturas e tradições. Todos tem em comum a arte como exposição de um drama, tanto interior como social, cuja finalidade e/ou presunção é a de chamar o espectador a partilhar do mesmo drama, quem sabe tomar parte, ou partido, ou ao menos questiona-lo a respeito da prioridade de seus valores. Dito de outro modo: ninguém pode permanecer neutro diante de uma ou outra das obras aqui lançadas à atenção do leitor, e para ele e com ele esquartejadas em suas dimensões e significados.

Vemos assim o Picasso dos embates políticos do século XX, e o David, registrador e paladino da Revolução; os holandeses Rembrandt e Van Gogh, ambos de certa forma marginais na sociedade de seu tempo, e por isso questionadores da mesma; Rothko e sua arte abstrata mas nem tanto, e o inglês Turner, grande pintor em suas tranquilas paisagens, mas gigantesco em suas telas históricas; e os italianos Caravaggio, tudo carne e sangue, e Gianlorenzo Bernini, mestre do mármore que toma vida. 

"O incrédulo São Tomé" de Caravaggio [Reprodução]
“São histórias pessoais e também histórias da arte (às vezes eu não percebia a diferença)” escreve Schama em sua abertura, e completa, trazendo o observador-leitor para o bem perto da tela, quase introduzindo-o nela: “o sucesso ou o fracasso de seus protagonistas envolvia elementos cruciais de nossa existência individual e coletiva: salvação, liberdade, mortalidade, transgressão, o mundo, nossas almas”. 

Picasso, numa citação do autor, afirmava que “os quadros não são feitos para decorar apartamentos; são armas de guerra”. E como tais, produzidas sob o efeito de uma forte tensão individual e social, as obras apresentadas nestas páginas nos perturbam, sejam elas a Cabeça de Medusa de Caravaggio, ou A Conspiração do Batavos de Rembrandt, ou ainda o Campo de Waterloo de Turner. Esse é afinal ‘o poder da arte’, o “poder da surpresa perturbadora”, capaz de “representar o belo” e “destruir o banal”.

Assim, Caravaggio, não é só o sangue jorrando da cabeça cortada da medusa ou de Golias ou da cabeça que ainda vai ser cortada de João Batista, mas são também os pés dos santos ou dos populares em primeiro plano em suas telas, e dos quais parece possível perceber o odor, que nos convidam a entrar na tela, a nós, observadores externos. Parece um convite a nos sentirmos parte da cena, nós também assassinos ou trapaceiros, devotos ou curiosos. Do mesmo modo, as grandiosas cenas históricas de David, e sobretudo o seu Marat assassinado, quadro celebrado durante a Revolução, diante do qual multidões choraram, e hoje quase escondido na penumbra de uma sala de exposição em Bruxelas. E seu autor: idolatrado no tempo de Robespierre e mais tarde denunciado, obrigado a uma retratação, reciclando-se como pintor dos feitos napoleônicos, e novamente caído em desgraça junto com seu imperador, e exilado como aquele. 

O leitor pode assim percorrer, tendo Schama como guia, as temporalidades da história através da produção artística de seus escolhidos, a Roma de Caravaggio e Bernini como a Paris de David, a Amsterdam de Rembrandt ou a Londres de Turner. Interessantíssimo, então, é acompanhar os altos e baixos da fama de Rembrandt junto a seus concidadãos, que ora o idolatram ora ou desprezam, e como o pintor reflete isso tudo em sua arte, em sua forma de pintar, nos sujeitos escolhidos, e até numa simples pincelada (o brilho intenso na borda da tela no cavalete, em O Artista em seu ateliê, ou os jogos de luz e de linhas no soberbo Ronda Noturna). E descobrir que o Turner mais genial não se encontra nas lindas e sugestivas paisagens, nas quais pores do sol, nevoeiros e arco-íris conquistam o observador com sua beleza e poesia, e sim em seus óleos históricos: batalhas (Trafalgar, Waterloo), naufrágios célebres, o incêndio do Parlamento de Londres. Dessas telas, aliás, a maioria está hoje inacessível ao público inglês, escondidas em depósitos de museus londrinos ou expostas em galerias estrangeiras – sinal de uma incompreensão desta vertente de sua arte em sua própria pátria.


“Ronda noturna” de Rembrandt [Reprodução]
Ainda há as páginas dedicadas às obras de Bernini, que nos falam sobre seus retratados às vezes através de um detalhe: um botão da roupa que não entra na casa, um músculo contraído, o gesto de uma mão. O êxtase de santas e beatas, episódios bíblicos ou mitológicos, bustos de cardeais e mulheres do povo: as esculturas do mestre italiano não são imóveis blocos de mármore trabalhados, correm, gritam, se curvam, escapam da força da gravidade. E os sapatos e as raízes de Van Gogh, as cores de Rothko, as Guernicas de Picasso...o leitor vai descobrir. 

Um livro que é ao mesmo tempo uma visita guiada numa galeria especial, onde oito artistas estão à nossa espreita, com suas obras carregadas de sentidos, e um passeio pela história do mundo, com capítulos dela lidos para nós por um grande historiador. A História da Arte, enfim, pode ser tudo – menos desinteressante.

Fonte: Revista de História
Por: Marcello Scarrone

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