Em Os Miseráveis, Victor Hugo remonta ao senso de justiça e perdão com um ladrão (e o que nós fazemos?) |
Outro dia eu folheei uma adaptação de Os Miseráveis que já começava com a chegada de Jean Valjean na venda dos Thénardier. Suprimia-se, portanto, toda a história do Monsenhor Bievenu, o bispo de Digne, a qual ocupa bem umas 200 páginas no original de Victor Hugo. Mesmo as frequentes adaptações para o cinema e para o teatro não costumam dar ao bispo todo o destaque que ele recebe no livro. E, no entanto, a trama só se justifica pela ação desse bispo em favor de um ladrão. Sendo ele um dos personagens mais cristãos da literatura, é interessante evocar a sua figura nesses tempos em que tanta gente concilia, dentro de si, a crença em um Jesus crucificado e a de que bandido bom é bandido morto.
Com efeito, o bispo de Digne tinha um modo diferente e próprio de julgar as coisas. Um dia, por exemplo, em meio a suas visitas pastorais, ele precisava atravessar uma cadeia de montanhas onde, sabia-se, refugiava-se um terrível grupo de salteadores. O bispo queria ir sem escolta, mas tentaram demovê-lo. Como o bispo insistisse, alegando que era preciso levar a palavra de Deus até a outra aldeia, quiseram saber: “Mas e os salteadores?”. Ao que o bispo respondeu: “O senhor tem razão. Pode ser que eu os encontre. Também eles devem precisar que lhes falem um pouco de Deus”. E seguiu em frente.
Mais tarde, refletindo sobre o ocorrido, o bispo escreveu: “Nunca devemos ter medo de ladrões ou assassinos. São perigos externos e os menores que existem. Temamos a nós mesmos. Os preconceitos é que são os ladrões; os vícios é que são os assassinos. Os grandes perigos estão dentro de nós. Que importância tem aquele que ameaça a nossa vida ou a nossa fortuna? Preocupemo-nos com o que põe em perigo a nossa alma”. E mais adiante: “Não deve existir precaução alguma contra o próximo. O que o próximo faz é permitido por Deus. Quando pressentimos que algum mal vai nos acontecer, limitemo-nos a rezar. Rezemos, não por nós, mas para que o nosso irmão não venha a pecar por nossa causa”.
É por não se preocupar em preservar a própria vida que o bispo de Digne deixa destrancada a porta de sua casa, por onde, certa noite, entra Jean Valjean – naquela altura, um bandido. É acolhido, recebe uma cama para dormir e não ouve nenhum sermão. De madrugada, foge com a prataria do bispo. Capturado por policiais, é conduzido até a casa do bispo para confirmar que se trata da sua prataria. Este, para espanto geral, diz que tudo o que Jean levava havia sido seu presente – e ainda insiste que leve também os castiçais, que ele havia deixado para trás.
Ora, ao agir dessa maneira, o bispo amontoou brasas sobre a cabeça de Jean – é isso que Salomão diz, em um dos seus provérbios, que acontece com quem recebe amor de seu inimigo. Comovido interiormente, consciente de não ser merecedor, Jean Valjean começa ali a transformação que irá conduzi-lo por toda a história.
Victor Hugo dá a entender que o bispo guiava suas ações pelo Evangelho. Trata-se, portanto, do mesmo livro em que creem muitos formadores de opinião neste país. No entanto, uma observação empírica sugere que, não o bispo, mas Javert é o personagem de Os Miseráveis que mais corresponde ao seu modo de pensar. Javert é, afinal, o policial para quem Jean Valjean nunca deixará de ser um simples bandido que, como tal, merece ser castigado e isolado da sociedade. É com rigor semelhante que tais cristãos bradam por justiça, uma justiça tal que não abre concessão alguma à misericórdia – quem está com pena, afinal, “que leve o bandido para casa”. Provavelmente, se o destino lhes colocasse em posição de dívida para com uma pessoa assim, teriam o mesmo desfecho de Javert.
Se a postura do bispo parecer impossível de se reproduzir, fruto da mera ficção, convém observar se foram mais fáceis as recomendações deixadas pelo homem da cruz – alguém que, no momento derradeiro, ainda permitiu que um bandido entrasse no Reino dos Céus.
Fonte: homoliteratus
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