Pai conta em livro os obstáculos à criação de um garoto autista

RESUMO - Em "Meu Menino Vadio", que a Intrínseca lança neste mês, o jornalista narra a relação com o filho, diagnosticado com autismo aos quatro anos. O trecho reproduzido aqui mostra a via tortuosa até a descoberta do transtorno. Depois disso, aos cinco, o garoto é levado à Austrália pela mãe, à revelia do pai. 

Henrique foi um bebê alegre e esperto. Não engatinhou, mas ficou de pé com facilidade. Mexia em tudo, demonstrando prazer especial em bagunçar meus CDs. Gostava daquelas brincadeiras de "cadê?" e "achou!". Eu ficava atrás do sofá, ele vinha pelo lado e ria ao me encontrar. Falava "mamãe", "bola" e algumas outras palavras. 

Mais tarde, houve quem dissesse que enxergava algo estranho nele desde o berço. Deviam ter falado antes. São os profetas do passado. 

Com um ano e dez meses, foi para a sua primeira escola. Há fotos em que ele aparece sorridente, brincando no pátio. Mas os educadores e nós, pais, percebemos que havia diferenças em relação aos colegas. Henrique falava pouco, chorava muito e pedia colo às professoras. 

Para ajudá-­lo a se sentir bem na turma e não fugir para o pátio, a coordenadora propôs que a babá ficasse na sala de aula. Numa reunião, a mãe de outra criança reclamou que não estava pagando mensalidade para seu filho dividir sala com um menino que ainda precisava de babá. A calhordice humana não falha. 

Na mesma época, começamos a perguntar à pediatra sobre o atraso na fala. Ela dava respostas do tipo "não é nada, vocês mimam muito, daqui a pouco vai falar". Tal ignorância só teve como consolo (para ela, não para nós) o fato de não ser exclusiva dessa médica. No Brasil, a maioria dos pediatras não tem a menor ideia do que seja autismo. Creio que não recebam na faculdade aulas sobre o transtorno nem procurem se informar. Em outros países, não parece ser totalmente diferente, a julgar pelo que se lê nos livros escritos por pais. Como não sabem do que se trata, vão empurrando com a barriga, até que passam o caso para um psiquiatra infantil. A demora aniquila as chances de um diagnóstico precoce e de iniciar mais cedo as terapias. 

A primeira escola de Henrique fechou. Não por causa dele, garanto. Procuramos outra. Nenhuma agradava, embora nós, com tantas incertezas, não soubéssemos bem o que buscávamos. Acabamos caindo na armadilha da proximidade geográfica. Escolhemos uma escola não muito distante, com fachada liberal e, como descobrimos, práticas muito conservadoras. Não sabiam o que fazer com Henrique. Trancavam a porta da sala para que ele não saísse. Mais de uma vez fui embora ouvindo meu filho chorar. É absurdo que eu não o tenha tirado de lá antes.

Chamar a psicóloga da escola de fraca seria elogiá-­la. Era asinina. Ouvi­la falar dava náuseas e, depois, raiva, por constatar nas mãos de quem meu filho se encontrava. A única vantagem das conversas foi perceber que a situação de Henrique era mais complicada do que supúnhamos. Mas ainda não sabíamos que aquilo se chamava autismo. 

A primeira terapia que ele fez não era diretamente relacionada aos deficits. Foi com uma psicomotricista, por causa de suas pernas tortas, que lembram as minhas. A profissional disse que ele tinha hipotonia (tônus muscular reduzido), o que mais tarde eu soube ser comum em crianças autistas –e, mesmo tendo se tornado um adolescente forte, as coisas continuam caindo de suas mãos a todo instante. 
Pouco depois, por volta dos três anos, começou a fazer sessões de fonoaudiologia. É uma etapa pela qual a maioria dos pais passa, pois se acredita (ou se deseja) que o problema possa estar restrito à fala. Não estava, mas a profissional e uma nova psicomotricista –as duas trabalhando em parceria– ajudaram muito Henrique em vários sentidos, inclusive o emocional, dando-­lhe suporte afetivo.

E a terapia central, qual seria? A primeira indicação recaiu em uma psicanalista. Estranhamos o consultório um tanto formal, com direito a divã ortodoxo (às vezes usado por Henrique de forma heterodoxa). Mas, como as primeiras conversas foram boas, resolvemos apostar. Uma aposta cara, aliás. 

A fala não vinha, e o fantasma do autismo se tornava mais e mais real. Perguntávamos para a terapeuta, e ela falava em "características autistas", "traços autistas", mas não batia o martelo. Se eu e a mãe não exigíamos uma resposta firme, certamente era por medo. Não queríamos ter a confirmação de um diagnóstico que se mostrava inevitável. 

Foi dada a partida, naquele momento, para a epopeia de exames –que seriam desnecessários se já tivéssemos o diagnóstico. Eletroencefalograma: nada de anormal. Ressonância magnética: idem. Para os dois, Henrique teve de ser sedado. Era de doer. Em nós, pais. Também fomos a uma geneticista. Ela explicou que não havia exame capaz de assegurar autismo, algo que só uma observação clínica faria. Recomendou uma coleta de sangue para investigar se ele tinha síndrome do X frágil, anomalia que provoca retardo mental e outras consequências. O resultado foi negativo. 

Henrique já estava com mais de quatro anos quando a psicanalista, pressionada por nós, falou, enfim, de autismo. Àquela altura, foi um alívio. Era impossível continuarmos evitando o que estava na cara. Tínhamos de concluir a primeira fase do luto e esboçar um passo à frente. 



Decidimos levá-­lo a uma psiquiatra infantil, e esta, em duas sessões, confirmou o diagnóstico. Pôs o caso na conta do então muito falado transtorno invasivo do desenvolvimento sem outra especificação, apelidado de "autismo atípico". 

A expressão "autismo atípico" serviu como um analgésico. Eu me lembro de sair repetindo as palavras para outras pessoas, como se dissesse: não é tão grave assim, ele vai evoluir. Havia nisso mais fé do que conhecimento. 

A psicóloga do divã ortodoxo também tinha muito mais fé do que conhecimento. Como fui percebendo, estava completamente desatualizada, ainda entendendo o transtorno como psicose. E a fé dela era de que, um dia, o inconsciente de Henrique aflorasse e ele começasse a se "libertar" daquele mundo. Por isso recusou­-se por tanto tempo a dar um diagnóstico. Dizia que era um tema entre ela e seu cliente –no caso, um menino não verbal de quatro anos. 

O fracasso da opção psicanalítica nos levou a uma guinada de 180 graus. Escolhemos como nova terapeuta uma comportamentalista. Ela atendia numa clínica na rua Paulo Barreto, em Botafogo, e estava sempre elegante, o que levou uma das minhas irmãs a chamá­-la de "Barbie terapeuta". Era seguidora canina das regras do método ABA ("applied behavior analysis", ou análise comportamental aplicada). 

Consiste em estimular respostas e comportamentos adequados a partir de prêmios e punições: se acertou, ganha algo (bala, chocolate, cócegas, abraço); se errou, deixa de ganhar. Não faz muito tempo (1987), o médico noruego-americano Ivar Lovaas tornou-­se famoso graças a um estudo no qual afirmava que, submetendo­-se autistas a 40 horas semanais de ABA (uma overdose terapêutica, portanto), 47% deles não seriam mais distinguíveis dos "normais". Para assinalar as atitudes inadequadas, ele usou punições como palmadas, ruídos altos e até choques de baixa voltagem. Reconheceu depois que, sem esses recursos, não teria atingido resultado tão expressivo. 

É improvável que ainda se usem meios violentos nas sessões de ABA, mas permanece a lógica de que é preciso corrigir certas pessoas para que elas se tornem o que a sociedade considera normal. "No fundo, é uma teoria fundada na intolerância, no entendimento da diferença como algo a ser suprimido", escreve Ana Nunes em "Cartas de Beirute". 


Por FERNANDO VIANA
Fonte: Folha de São Paulo

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