Obras discutem a melancolia e as leituras de Clarice Lispector
Existem os escritores conhecidos. Há também os reconhecidos. Acima deles pairam os canônicos. Os sempre citados e estudados. Se Machado de Assis ocupa o topo de cânone brasileiro no século 19, Clarice Lispector fica com o posto no século 20. Essa é, na verdade, uma classificação controversa. Afinal, a autora de A Hora da Estrela, O Lustre e A Paixão Segundo G.H. concorre com nomes como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e até Jorge Amado e Érico Veríssimo, especialmente quando a literatura brasileira é estudada no exterior – e, neste caso, cada um, influenciado pela própria história, tem a sua preferência.
“Quando se pega um autor canônico, a sensação é a de que já se disse tudo”, afirma Jeana Laura da Cunha Santos, 30 anos, autora de A Estética da Melancolia em Clarice Lispector (Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 176 págs.). “Acho que a saída, neste momento, é partir da obra para depois chegar à teoria”, afirma ela. “Embora a obra de Clarice tenha sido estudada por muitos, achei um filão inexplorado”, conta Ricardo Iannace, 33 anos, autor de A Leitora Clarice Lispector (Edusp/Fapesp, 226 págs.). “Rastreei os autores citados por ela, que não são poucos, e procurei estudar a influência de alguns deles, como Monteiro Lobato, Dostoievski, Chekhov e Katherine Mansfield.” Iannace concluiu que Clarice era uma excelente leitora, ao contrário do que gostava de dizer nas entrevistas que concedia.
Jeana e Iannace viram suas dissertações serem publicadas na forma de livro recentemente (ela no fim do ano passado, ele neste mês). Lícia Manzo tem outro estudo de Clarice no prelo. São abordagens completamente diferentes da obra da escritora – que, nascida na Ucrânia, chegou ao Recife com dois meses, foi alfabetizada em português e publicou seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, em 1944.
“Clarice é muito mais densa do que a maioria dos escritores brasileiros”, diz o crítico literário Flávio Kothe, professor da Universidade de Brasília e autor dos livros O Cânone Colonial, O Câmme Imperial e que deve lançar, ainda neste ano, O Cânone Republicano. “Mas nenhum escritor é cultuado apenas por suas qualidades. Sua obra também alimenta a ideologia da classe dominante. Acho A Hora da Estrela, por exemplo, ao contrário da voz corrente, um de seus piores livros”, afirma, tentando justificar a permanente sedução que a autora exerce sobre os jovens estudiosos.
Kothe participou do júri que concedeu a Clarice, em 1976, um ano antes de sua morte, o prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal e orientou duas teses sobre ela – uma delas na Alemanha, defendida por Ano Ring, que a apresentava como a escritora feminina mais importante da língua portuguesa. Na sua opinião, a morte de Macabéa (no fim do último livro de Clarice publicado enquanto a escritora ainda vivia), atropelada por um chofer alourado dirigindo um Mercedes (alemão, portanto), é uma alegoria infeliz da presença de empresas multinacionais no Brasil, revelando uma não-compreensão do processo histórico que transcorria e a eleição de uma personagem passiva para representar o brasileiro.
Essa leitura a partir do processo histórico do País não é a única possível. Clarice foi como que “adotada” pelos estudos feministas nos anos 80; nos anos 60 e 70, foi enfatizado o caráter epifânico e existencialista de suas obras. O fato é que a leitura de Clarice segue provocadora. Jeana Laura, por exemplo, defende que “ainda não entendemos Clarice Lispector: tenta-se a todo o tempo classificá-la, mas ela sempre foge, escapa”.
Assim, mesmo os estereótipos de Clarice dividem os estudiosos. Jeana acha mesmo que uma certa “alma feminina” ajuda a penetrar no universo de Clarice. Para os homens, considera mais fácil começar a lê-la a partir dos contos, um tanto mais objetivos. Já Iannace argumenta que a clausura em que se inserem as personagens de Clarice não depende de seu sexo.
Clarice conta que, quando leu Crime e Castigo, de Dostoievski, teve febre. Quando ganhou o primeiro dinheiro, aos 15 anos, foi à livraria e folheou todos os livros, até que um prendeu a sua atenção: “Mas este livro sou eu”, escreveu em A Descoberta do Mundo. Ela não lia apenas clássicos e autores reconhecidos: “Clarice tinha interesse sobretudo em ler”, defende Iannace. Ele relaciona as citações que Clarice faz em suas obras – e elas vão do Código Penal a livros de culinária, passando pelo conto de fadas A Bela e a Fera, de Madame Leprince de Beaumont, pelo livro infantil As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, e por Humilhados e Ofendidos, de Dostoievski – esses últimos com suas relações com a obra de Clarice aprofundadas por Iannace.
O pesquisador procura, quando a relação com uma leitura feita pela escritora é mais evidente, especialmente no caso dos clássicos, estabelecer quanto Clarice respeita e quanto ela transgride o texto referencial. E, pensando genericamente, conclui: “Ela é uma escritora que costuma transitar pela contramão.”
No seu doutorado, Iannace está voltando a Clarice. Vai estudar as traduções que ela fez de Oscar Wilde, Edgar Allan Poe e Agatha Christie. Quem ainda não viu qualquer relação entre esses autores, aqui vão os títulos: O Retrato de Dorian Gray, O Retrato Oval e O Retrato. Como se não bastasse, a epígrafe é de James Joyce – do livro O Retrato do Artista Quando Jovem.
Melancolia – Jeana formou-se em jornalismo. Nessa época, leu Água Viva, seu primeiro contato com Clarice. Também conheceu a obra do filósofo alemão Walter Benjamin, leitura obrigatória nos cursos de graduação na área de comunicação. Um problema nos textos de Benjamin que leu – o da melancolia – a fez pensar na obra de Clarice. Seu trabalho acabou sendo também fortemente influenciado pela psicanalista Julia Kristeva.
Jeana lembra que a melancolia não é uma novidade trazida por Clarice para a literatura brasileira. Brás Cubas, personagem central das Memórias Póstumas, de Machado de Assis, introduz o problema no repertório literário nacional, ao pretender criar uma emplasto “destinado a aliviar nossa melancólica humanidade”.
“Clarice era melancólica pessoal e literariamente”, diz Jeana. Mas o que é essa melancolia, afinal? O conceito, segundo Benjamin, em A Origem do Barroco Alemão, “assinala, ao mesmo tempo, o começo e o fim da tristeza”. Na obra de Clarice, Jeana define a melancolia, buscando ajuda na brasileira Olgária Matos, como “a queda no silêncio e, ao mesmo tempo, necessidade de falar”. Apenas para constar, Jeana decidiu, no seu doutorado, estudar Machado e o seu entusiasmo pelo jornalismo como parte do amadurecimento do escritor.
Em A Hora da Estrela, Clarice escreve (na voz de um personagem masculino): “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.” Da mesmo forma, enquanto os leitores encontrarem perguntas e não acharem respostas em Clarice, continuarão perdidos “no inferno abrasador de um canyon”, lutando desesperadamente para entendê-la.
Pelo menos é o que sugere um subtítulo de um artigo de revista que a narradora de A Paixão Segundo G.H. não terminou de ler.
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Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo em 21 de abril de 2000.
Fonte: operamundi
Por Haroldo Ceravolo Sereza
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