A mulher que saiu em defesa de Capitu

Machado de Assis
A análise de Helen Caldwell não se limita a "Dom Casmurro"; na verdade, ela passa por inúmeras obras e contos de Machado de Assis.

Traiu ou não traiu? Claro que o assunto é Capitu. A discussão sobre Dom Casmurro é antiga, desde José Veríssimo sabe-se que o narrador de Machado de Assis não é confiável.


Poster de montagem de “Otelo” nos EUA, em 1884

Mas essa conversa tomou outro rumo em 1960, quando a norte-americana Helen Caldwell, também tradutora de Dom Casmurro, publicou O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. Conhecido e bastante citado pela crítica literária brasileira, o estudo nunca ganhara uma tradução no País. Agora, acaba de ser lançado pela Ateliê, com tradução de Fábio Fonseca de Melo. Segundo Roberto Schwarz (autor de Duas Meninas, Companhia das Letras), Caldwell foi o olhar de fora capaz de perceber o que os leitores brasileiros já não conseguiam: ver com total desconfiança o discurso de Bentinho.

Valentim Facioli, autor de Um Defunto Estrambótico (Nankin), afirma que, hoje, o estudo perdeu parte de seu impacto, mas que a obra “desvendou a ideologia do paternalismo brasileiro, mostrando que o problema d o livro não era Capitu, mas Bentinho”.

Caldwell se opõe frontalmente à leitura então corrente – a de que era certa a traição de Capitu – e vai defender com ardor e muitos argumentos a sua “honestidade”. O machadiano John Gledson, ainda sobre esse estudo, escreveu: “(Ela) argumenta, pela primeira vez, que Capitu é inocente do adultério que Bento lhe imputa, argumento que mesmo insustentável em seu todo – é impossível provar a culpa ou a inocência de Capitu –, mudou totalmente o ponto de vista tradicional sobre o romance.”

Muito antes de Harold Bloom descobrir o gênio do brasileiro, Caldwell escreveu em seu prefácio: “Os brasileiros possuem uma joia que deve ser motivo de inveja para todo o mundo, um verdadeiro Kohinoor (referência a um famoso diamante indiano que integra a coleção do tesouro britânico) entre os escritores de ficção: Machado de Assis.”

Ela segue afirmando: “Porém, mais do que todos os outros povos, nós do mundo anglófono devemos invejar o Brasil por esse escritor que, com tanta constância, utilizou nosso Shakespeare como modelo – personagens, tramas e ideias de Shakespeare tão habilidosamente fundidos em enredos próprios –, que devemos nos sentir lisonjeados de sermos os únicos verdadeiramente aptos a apreciar esse grande brasileiro.”

Mas abandonemos a anglolatria de Caldwell para passar ao coração do trabalho: a aproximação que ela faz entre os personagens de Shakespeare e os de Machado.

Não é uma relação direta. Capitu não é igual a Desdêmona (sua morte é, primeiro, figurada, com a mudança para a Europa, para só depois se materializar) nem Bentinho não é apenas Otelo. Bento Santiago, ela defende, é também Iago. Nesse sentido, o Iago de Dom Casmurro é um dos lados do próprio Otelo. Citando uma famosa crítica de Machado a O Primo Basílio, de Eça de Queirós, diz que é Santiago quem manipula os aspectos acessórios do romance, ou seja, o “lenço”.

“Devemos reler, então, a fórmula da ação dramática de Machado: a alma ciumenta de Otelo-Santiago, a perfídia de Iago-Santiago e a culpa (ou inocência) de Desdêmona-Capitu.”

A aproximação entre o narrador de Dom Casmurro e Otelo começa por seu nome: Bento é uma redução de Benedito – São Benedito, o Mouro. Mostra ainda outras indicações de sangue negro nas origens e nos sobrenomes (Albuquerque e Fernandes) do personagem. “Alguns críticos de Shakespeare”, escreve a autora, “reuniram evidências para demonstrar que Otelo é uma peça sobre o milagre, em que Desdêmona representa Cristo e Iago o diabo, em luta pela alma de Otelo. Outros críticos, como já fizemos observar, embora não partilhem dessa ideia, acreditam mesmo assim que Desdêmona simboliza o bem em Otelo e Iago, o mal. O nome ‘Santiago’ cabe bem em uma construção similar de nosso herói: ele é parte santo (‘Sant’), parte Iago – o bem, ou o santo, e as qualidades de Iago em guerra recíproca por sua alma”, escreve ela.

Logo no início do livro, ela explica: “Santiago chama a si mesmo de ‘Otelo’, mas sua franqueza desembaraçada, calma imparcialidade e raciocínio assemelham-se mais propriamente ao estilo dissimulado do ‘honesto Iago’ que ao do apaixonado Iago.”

A análise de Caldwell não se limita a Dom Casmurro. Na verdade, ela passa por inúmeras obras e contos de Machado. “O ciúme ocupa um espaço importante em sete de seus nove romances; a trama de dez contos trata da vil paixão – embora, nos sete últimos, o tratamento seja irônico, senão cômico. O Otelo de Shakespeare aparece no argumento de oito narrativas, peças e artigos”, enumera.

O terceiro capítulo é dedicado ao romance Ressurreição, o primeiro de Machado, publicado 28 anos antes de Dom Casmurro. Para ela, nesse romance, há um Otelo (Félix), uma Desdêmona (Lívia) e um Iago (dr. Batista) de inspiração clara. Depois de uma longa comparação entre os dois romances, ela conclui que “Santiago está correto em acreditar ter nascido entre as forças do bem e do mal, mas não está tão certo em acreditar que essas forças se encontravam incorporadas, respectivamente, em sua mãe e Capitu. A ironia não está nele ter sido enganado por Capitu, mas por ter sido enganado por si mesmo”.

Caldwell, depois de aproximar Shakespeare, volta ao romance e mostra como Santiago constrói um mundo de desconfiança, mas que só é capaz de culpar a mulher e o amigo pelo adultério. As provas que amealha se restringem a olhares e, especialmente, à suposta semelhança física entre Ezequiel, o filho do homem, e Escobar. Mas há muito mais gente que não se parece no livro: o próprio Bentinho é baixo, enquanto seu pai é alto; Capitu se parece com a mãe de Sancha, embora não tenha parentesco com ela; Ezequiel e a filha de Escobar se imitam, mas sabemos, por Bentinho, que ele embora tenha até imaginado a possibilidade, não chega a ter nenhuma relação maior com ela.

Ela não diz, mas mostra como Machado construiu um jogo de espelhos em que nada reflete perfeitamente nada, numa distorção proposital.

Mas voltando a Shakespeare e a Machado, vale mais uma citação de Caldwell: “Com Capitu, o Otelo da alma de Santiago morre, assim como morre o Otelo de Shakespeare, embora Iago continue vivo. E o comentário de Edward Dowden sobre Otelo se aplica igualmente a Dom Casmurro: pior que a morte de Otelo é o modo de vida de Iago: ‘Morrer à maneira de Otelo é atroz. Mas viver à maneira de Iago, comendo pó e aguilhoando as gentes – eis o mais aterrador.’”



Fonte: Opera Mundi Publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 10/11/2002.

Por Haroldo Ceravolo Sereza

About Leituras Livres

This is a short description in the author block about the author. You edit it by entering text in the "Biographical Info" field in the user admin panel.

0 comments:

Postar um comentário

Se tem algo que posso lhe dizer após ter chegado até o fim deste post é que estou muito grato por sua visita.

Por que a capoeira é a "arte-mãe" da cultura brasileira e da identidade nacional

Por Henrique Mann Músico, historiógrafo e mestre em Artes Marciais A capoeira ajudou a moldar o samba e até o futebol do país, defende pesqu...