Em entrevista em 2003, liderança do movimento negro lembrou os anos do jornal e afirmou: "Temos de estar na trincheira, mandando bala, mostrando que a realidade é outra"
De dezembro de 1948 a julho de 1950, um grupo de intelectuais negros, liderados por Abdias do Nascimento, fez publicar dez edições de Quilombo. O jornal estabeleceu um novo patamar na discussão dos problemas raciais do País, explicitando uma agenda política que rejeitava “a piedade e o filantropismo aviltantes” e lutava “pelo seu direito ao Direito”. O jornal também negava fortemente a ideia de que a luta contra o racismo não fazia sentido no Brasil, porque o problema não existiria por aqui.
A pauta de Quilombo, que acaba de ganhar uma edição fac-similar de seus números (Ed. 34, 128 págs.), impressiona, ainda hoje, por vários motivos. Em primeiro lugar, pela autoria dos textos. “À maneira dos melhores jornais americanos ou franceses da época, o Quilombo congregava, num mesmo espaço político e cultural, intelectuais negros e brancos, que emprestavam sua grandeza para a construções do pós-racismo brasileiro: gente da envergadura de Guerreiro Ramos, Ironides Rodrigos, Edison Carneiro, Solano Trindade; ou do quilate de Nelson Rodriues, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Péricles Leal, Orígenes Lessa, Roger Bastide, para ficar nos maiores”, escreve Antonio Sérgio Alfredo Guimarães na introdução à edição. “Mantendo-se em sintonia com o que se produzia em Paris, Nova York ou Chicao, traduziu e deu a conhecer o texto Orpheu Negro, de Jean-Paul Sarte, entrevistou Albert Camus, reproduziu artigos do The Crisis“, continua.
Outro aspecto, talvez até mais importante, é a ideia de que o racismo precisava ser combatido em várias frentes. Os textos variam da questão institucional, em torno da discussão da lei do então deputado Afonso Arinos, que transformaria em crime a discriminação racial, à eleição da boneca de piche, uma miss negra. As capas traziam modelos e atrizes, realçando a beleza negra, e textos se queixando da recusa de escolas à presença de negros. O jornal também procurava lembrar nomes como Lima Barreto, Cruz e Souza e Teodoro Sampaio, e sempre, claro, tratava do mundo do teatro. Fazia denúncias contra quem praticasse a discriminação, condenava as condições de trabalho das empregadas domésticas e defendia candidatos negros.
Para inaugurar a coluna “Democracia Racial”, o jornal convidou Gilberto Freyre, que defendia que no País vinha se “definindo uma democracia étnica”. “Nós queríamos as opiniões as mais diversas”, lembrou, nesta semana, por telefone, deo Rio, Abdias do Nascimento, nascido em Franca (SP), em 1914. “Até quem discordava. O Gilberto Freyre participava dos nossos atos.”
Leia abaixo a entrevista de Nascimento
Pergunta – Como é ver Quilombo reeditado? Abdias do Nascimento – Gostei muito, porque me lembra uma época, todos aqueles amigos, o contexto social. Nosso grupo se reunia todas as tardes, tomava cafezinho, essas coisas que não há mais hoje em dia. Hoje, está todo mundo enclausurado, as pessoas se esquecem que a vida é diálogo.
Para a história do movimento negro, qual a importância do jornal? O Quilombo ajudou a despertar a consciência do negro, de seus valores. Infelizmente, não pôde continuar. Teve uma circulação pequena, mas influente, porque era bem realizado. Ele ajudou a aglutinar as pessoas e a mostrar que o Teatro Experimental do Negro não era só um grupo de teatro, era também uma frente de luta. Nós organizamos duas conferências nacionais do negro, um conresso, advogamos a discriminação racial como crime, políticas públicas em favor do negro, patrocinamos o concurso do Cristo Negro. Não tínhamos um programa estreito e conseguimos concretizar muitas questões.
Que questões, na sua opinião, avançaram a partir do que vocês defenderam?
Em vários pontos, fomos vitoriosos. A questão das cotas, que agora é moda, por exemplo. Estávamos falando disso desde os anos 1940, talvez com outro nome. As ideias ficam, elas pode demorar, mas acabam germinando. A ideia de que a discriminação racial é crime, por exemplo. Depois que passar essa questão das cotas, a sociedade brasileira vai discutir, em seguida, outra coisa que já falávamos, que é a da compensação aos negros pela escravidão. É uma questão de justiça. Outros grupos humanos, como os judeus, acabaram recebendo, ainda que não totalmente, alguma forma de indenização pelo que sofreram. Quando acabou a escravidão, Ruy Barbosa já defendia que os negros fossem indenizados. Já lá havia o germe da correção dessa injustiça.
Essa, então, deve ser próxima bandeira do movimento negro? Essa é uma questão que a comunidade tem de buscar, temos de reconstruir a dignidade da população de cor. O negro não nasceu escravo, isso é importante para resgatar a integridade do negro, que, depois do fim da escravidão, continuou espoliado, atirado na pior situação, enquanto os herdeiros dos donos de escravos continuaram a enriquecer.
Mais de 50 anos depois, pelos textos do Quilombo, é possível perceber que alguns argumentos enfrentados pelo movimento negro são semelhantes.
Os argumentos são parecidos, às vezes usam até as mesmas palavras. Mas toda a minha identidade foi construída assim, desde a minha escola primária, em Franca. Eu luto por essas coisas, me chamam de radical, rebelde. Foi assim que eu virei adulto, lutando contra a sociedade que quer associar o negro à vadiagem, à contravenção, a mesma sociedade que muitas vezes o joga nessa situação. Acabei ficando com uma imagem desagradável. Quem trata desses problemas acaba estigmatizado. O negro bem-vindo é aquele que não reclama, que aceita as patacoadas de democracia racial, etc. Temos de estar na trincheira, mandando bala, mostrando que a realidade é outra. A democracia racial deve ser perseguida como utopia, ninguém é contra ela, contra a miscigenação, desde que não haja uma pressão para que o negro “embranqueça”, como sempre houve no Brasil.
A escritor Toni Morrison disse que a criança nera hoje tem, nos EUA, condições melhores que as que viveu. Não só porque não há mais discriminação institucionalizada, mas também porque há negros como modelo de sucesso. No Brasil, o que mudou?
Alguma coisa melhorou. Mas tudo isso foi fruto de uma grande luta. Hoje, temos uma secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Matilde Ribeiro, o vice-presidente do Senado, o Paulo Paim, vários deputados. As coisas estão mudando, mas elas não podem parar, porque senão volta tudo. A sociedade brasileira é hipócrita e covarde. O negro não pode bobear.
O movimento negro tem algo de semelhante ao que representou o Quilombo?
No Rio e São Paulo, não vejo uma imprensa negra. Teve a revista Raça, mas ela era mais comercial e acabou. De todo modo, as caras negras estão aí. Temos de trabalhar muito ainda.
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 8 de junho de 2003.
Fonte: Opera Mundi
Por Haroldo Ceravolo Sereza
Por Haroldo Ceravolo Sereza
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