Uma palavra esquecida: decoro

Decoro: o que é digno de qualquer pessoa e do lugar que tem e tão proporcionado ao seu estado, que nem exceda suas forças, nem seja inferior as suas forças. De todos os animais, só o homem sabe o que é decoro e ordem” – BLUTEAU, Rafael, Vocabular Portuguez e Latim, Lisboa, 1712.


Cicero acusando Catilina no senado (Afresco de Cesare Maccari, século XIX). Fonte: Wikipedia.

Para o Brasil dos séculos XVII e XVIII, “decoro” era um conceito fundamental. Em uma sociedade fortemente hierarquizada, a paz e a harmonia poderiam ser alcançadas se os grupos sociais mantivessem-se dentro de seus limites. O conflito deveria ser evitado, pois, implicaria a quebra da hierarquia estabelecida. As autoridade deveriam ser justas com todos, dando a cada um o que lhe fosse merecido. O governante deveria ser virtuoso e parecer virtuoso: este é o ensinamento principal de Giovanni Botero e Tomás de Aquino. Qualquer autoridade ou pessoa de destaque na sociedade devia ser guiada pelo decoro. Não é necessário dizer que esse modelo idealizado estava muito distante da realidade. Nos escritos da época, a falta de decoro de certas camadas sociais, como clero, governantes, membros do judiciário e senhores de engenho, era comum. Essa quebra das normas poderia comprometer a harmonia idealizada e, por isto, deveria ser repreendida, na visão da época.

Emanuel Araújo ressalta que os padres e as freiras, em geral, não procuravam nem mesmo manter as aparências de recato e pureza que se esperava deles. Em “Teatro dos Vícios”, o autor destaca que eram comuns entre os membros da Igreja os casos de “homossexualismo, excessos no trajar-se, de corrupção, de sedução de mulheres, afora o mais frequente dos delitos em que se envolviam os padres: o concubinato.”As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia os religiosos são admoestados a viverem “virtuosa e exemplarmente”(…) não só na vida, e costumes, mas também no vestido, gesto, passos, e práticas tudo neles seja grave e religioso, para que suas ações correspondam ao seu nome, e não tenham dignidade sublime, e vida disforme; procedimento ilícito, e estado santo; ministério de Anjos e obras de demônios.”

O decoro também era uma qualidade do discurso. Cícero ressaltou que existem três estilos distintos, regidos por quatro virtudes retóricas: latinitas (pureza), perspicuitas (clareza), ornatus (ornamento), decorum (decoro). O estilo é o resultado da aplicação adequada do decoro e depende do “engenho” ou habilidade do orador. A utilização das características de um estilo num gênero equivocado é um vício a ser evitado. Outra possibilidade de falta de decoro é o excesso destas características, que resulta em frieza e afetação; ou a falta das mesmas, que implica aridez do discurso.

E hoje, o decoro ainda é uma qualidade buscada pela nossa sociedade? Houaiss define decoro como “acatamento das normas morais; dignidade, honradez, pundonor, seriedade nas maneiras, compostura; postura requerida para exercer qualquer cargo ou função pública”. Já o decoro parlamentar está descrito no regimento interno de cada casa do Congresso Nacional. Na constituição federal brasileira, no artigo 55, parágrafo 1.º diz: “É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas (art. 53) asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.

No século XXI, fica cada vez mais difícil definir o que é decoro. Nossos parlamentares e magistrados se comportam de forma decorosa? Os governantes o fazem? A sociedade, em geral, persegue esse conceito? Na vida pública, a lei claramente estabelece o que é inadequado, como ganhos indevidos ou abuso de poder, mas não creio que conseguimos realmente enxergar o que é indecoroso na política. No mundo corporativo, muita gente já foi punida ou perdeu o emprego por causa de declarações em redes sociais ou vídeos que se tornam de conhecimento público. Em tempos em que tudo pode ser registrado por um simples celular e colocado “na rede”, quais os limites do decoro?

Comportamentos que eram considerados inadequados no passado, hoje são aceitos com naturalidade. Na última semana, ocorreu um fato que me chamou atenção: uma mulher foi proibida de amamentar o filho em um espaço público. Os seguranças alegaram que o ato seria “um atentado ao pudor”, portanto, indecoroso para o lugar. Tal situação provocou uma forte indignação, principalmente entre as mulheres. Alimentar um bebê em público é inadequado ? Fere a moral vigente? O pundonor? Em tempos em que a nudez e a exibição do corpo estão presentes em qualquer lado que se olhe, causa estranheza esse tipo de repressão.

Decoro é uma palavra que caiu em desuso atualmente, lembrada apenas quando alguma figura política comete uma impropriedade, mas que merece atenção. O conceito de decoro, que no passado foi alvo de preocupação constante, adquiriu contornos muito mais sutis e até nebulosos. Devemos considerá-lo hoje sob o ponto de vista da ética e não apenas da imagem. Ou corremos o risco de confundir decoro com moralismo ou apatia. Voltando a Bluetau, ele também nos lembra que o hipócrita é aquele que”com aparência de virtude disfarça seus vícios e que sendo mau que parecer santo”.

Fonte: História Hoje
Texto de Márcia Pinna Raspanti

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