Por que ler Chimamanda Ngozi Adichie

A essa altura, não preciso mais apresentar Chimamanda Ngozi Adichie a vocês. Se a música da Beyoncé não fosse suficiente para colocá-la no radar da internet, seus discursos no TED, ambos disponíveis em vídeo, seriam. Mas depois de um período em que Chimamanda era mais conhecida como “a feminista de Flawless”, sua obra literária já é conhecida e valorizada pelo público brasileiro. De seus cinco livros, quatro foram publicados em português pela Companhia das Letras. Apenas The Thing Around Your Neck não foi publicado por aqui ainda. Ainda.



A cada resenha ou texto sobre Chimamanda que pipoca nas minhas redes sociais, sou tomada por um forte sentimento de paixão momentânea arrebatadora pela pessoa que escreveu o texto. Isso porque (e caso você seja miga, é provável que já saiba disso, pois eu falo a respeito o tempo todo) tenho uma admiração gigantesca pela Chimamanda e, principalmente, pelo trabalho literário dela. Sabe quando você lê alguma coisa e pensa “se eu pudesse escolher, era assim que eu gostaria de escrever”? Então. É isso que a obra dela me causa. Mas por quê?

Comecemos por Hibisco Roxo. É seu primeiro romance e tem roupagens de romance de formação (coming of age). O livro é narrado por Kambili, uma menina rica, filha de um grande empresário nigeriano. Nada de um país onde se faz safári e as crianças todas se parecem com os livros de Geografia do ensino fundamental. A Nigéria de Hibisco Roxo é complexa, cheia de nuances e diferentes realidades (como C E R T O S P A Í S E S). Kambili e seu irmão Jaja são superprotegidos a limites que beiram o abuso paterno, mas vestem as melhores roupas, estão acostumados com os pratos mais refinados e com uma abundância que em nada se aproxima das histórias de África que ouvimos por aí. Na outra ponta da história, seus primos Amaka, Obiora e Chima crescem em um ambiente de crise. A universidade onde sua mãe trabalha está sempre em greve, a comida é simples e até combustível está em falta. Chimamanda não escreve para explicar a Nigéria para seus leitores. Não é ela que vai dizer a alguém que tratar a África, um enorme contimente, como uma realidade única e homogênea é, no mínimo, estúpido. Mas ao ler seus romances, é possível entender melhor aquilo que nunca chegou até nós. Seria essa então a importância daquilo que discutimos em toda parte, a diversidade na literatura?

Em sua palestra O perigo de uma história única, Chimamanda compartilha o quanto é difícil para ela se ver na maioria das histórias que têm espaço na nossa sociedade. Chimamanda, mulher, negra e nigeriana, explicou em uma fala de poucos minutos o quanto a literatura canônica falha em refletir identidades múltiplas que fogem do modelo eurocêntrico branco. Quando assisti ao vídeo pela primeira vez, achei lindo, é claro. Todo mundo concorda com papos de diversidade num primeiro momento, desde que eles não pisem em terreno incômodo. E então vieram Americanahe Meio Sol Amarelo.

Americanah, seu romance mais recente, acompanha a trajetória de Ifemelu e Obinze, dois jovens que saem da Nigéria em busca de outras oportunidades. Ifemelu vai estudar nos Estados Unidos e Obinze acaba na Inglaterra.

“Alexa and the other guests, and perhaps even Georgina, all understood the fleeing from war, from the kind of poverty that crushed human souls, but they would not understand the need to escape from the oppressive lethargy of choicelessness. They would not understand why people like him who were raised well fed and watered but mired in dissatisfaction, conditioned from birth to look towards somewhere else, eternally convinced that real lives happened in that somewhere else, were now resolved to do dangerous things, illegal things, so as to leave, none of them starving, or raped, or from burned villages, but merely hungry for choice and certainty.” – Americanah

Anos depois, Ifemelu decide voltar para a Nigéria. Durante toda a narrativa da experiência dela nos EUA, somos expostos ao racismo indisfarçável do país, que em muito se parece com a situação brasileira, com a única diferença sendo o discurso falso de democracia racial que reina por aqui. Mas Ifemelu não é vítima apenas de preconceito escancarado. Na maioria das vezes são aqueles comentários aparentemente inofensivos que acabam escondendo uma mentalidade extremamente racista. Ifemelu escreve sobre tudo isso em um blog ao qual o leitor tem acesso.Qualquer pessoa que faça questão de negar a existência de uma supremacia branca ainda hoje ficará extremamente incomodada com os textos de Ifemelu. E é por isso que eles devem ser lidos.

Tudo isso, no entanto, não resume o conteúdo do livro. Ao mesmo tempo que expõe tópicos importantes, Chimamanda cria uma história de amor cheia de altos e baixos. Desenvolve personagens tão complexos que é impossível não se identificar com as características mais escondidas deles. Ifemelu é, ao mesmo tempo, uma mulher segura e cheia de dúvidas. Ela muda, amadurece, se questiona. Em seus momentos de insegurança, ela parece tão próxima quanto uma velha amiga sua. E além de tudo, o livro é dominado por um sentimento de saudade profunda. Uma nostalgia viva por um lugar que, sabe-se muito bem, já não existe mais da mesma forma que na memória. Um conceito de “lar” que só pode existir no passado.

Meio Sol Amarelo, no entanto, talvez seja meu favorito. A história e a voz de Kambili, em Hibisco Roxo, falam mais fundo, mas a importância de Meio Sol Amarelo deixa qualquer identificação mais pessoal turva. O livro é (e não consigo pensar em uma palavra mais apropriada) resistência.

Quatro décadas depois, Chimamanda decide prestar uma homenagem ao povo igbo e aos seus familiares que viveram a guerra de independência de Biafra. Biafra foi um país pequeno que existiu por um período muito breve de tempo. Hoje é novamente parte da Nigéria. E por acaso você estudou a secessão biafrense na escola? Eu estudei as unificações alemã e italiana e até a Guerra da Coreia, mas nunca sequer havia ouvido falar em Biafra. E só lendo Meio Sol Amarelo compreendi o quanto isso é ofensivo e desrespeitoso.

Ilustração de Irena Freitas
A guerra entre a Nigéria e a República de Biafra foi, na verdade, um massacre. Teve início com o massacre de milhões de pessoas da etnia igbo e continuou assim atém o fim. Biafra foi uma tentativa de resistir, de permanecer vivo e de sobreviver ao ódio entre etnias. Enquanto tudo acontecia, ninguém no resto do mundo tinha qualquer tipo de informação sobre isso. Ou, se tinha, fazia questão de ignorar. Não sei porque, mas isso tende a me lembrar fatos recentes.

Durante a guerra, nenhum órgão internacional interferiu a favor de Biafra. Ninguém denunciou o massacre. Ninguém vestiu luto pela população assassinada. “O Mundo Estava Calado Quando Nós Morremos” é o nome de um livro escrito por um dos personagens e também do poema que abre o livro fictício. É também o que Chimamanda diz ao longo de todo o romance. Como as relações pessoais definham durante uma guerra, como é preciso lutar por espaço para subjetividade quando uma bomba pode cair sobre a sua casa a qualquer momento. E como é fácil ignorar tudo isso quando não aconteceu com você ou o seu povo.

A escrita de Chimamanda Ngozi Adichie é, antes de tudo, boa. Simples assim. Ela sabe contar uma história. Mas além disso, é importante. E não porque ler sobre a Nigéria te dá direito à uma estrelinha dourada, mas porque a Nigéria existe, a África existe e todas essas histórias devem ter espaço. O racismo (e qualquer tipo de preconceito, na verdade) nasce da pressuposição de que o natural é a homogeneidade. O mundo lá fora não é homogêneo e não se parece apenas com o quintal de casa, por isso o que lemos não pode se limitar a isso.

Ler o trabalho de uma mulher, negra, africana, declaradamente feminista é, no mínimo, empoderador. Quando esse trabalho é de tirar o fôlego, como no caso, simplesmente não consigo achar um único motivo para não lê-lo.

Fonte: Revista Polen
por Milena Martins

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