MÃE - Por Ramalho Ortigão

Há dias, uma pobre senhora – uma burguesa, cuido eu –, casada, mãe de filhos, ainda nova e bela, teve de ser operada de um cancro, fazendo-se-lhe a amputação do seio direito. 



A operação deu em resultado observar-se que o tumor estava ramificado para o lado esquerdo do peito. A doente, que tinha sido cloroformizada para suportar a operação, recuperou os sentidos no momento em que se discutia e se preparava esta coisa terrível: amputar-lhe o seio que ainda lhe restava. Ela compreendeu, no meio do embaraço suscitado pelo seu despertar inesperado, qual era o segredo que procuravam ocultar-lhe e, com uma grande firmeza resignada, disse: 

– Cortem-mo também: o meu filho está criado.

Oh! Obrigado, minha desconhecida, minha obscura, minha santa amiga, que tens hoje no lugar da curva graciosa e sensual do peito feminino os ossos raspados pelo bisturi sob os quais se esconde o teu coração magnânimo! Bendita sejas tu que me permites, ao cabo de três anos dolorosos de crítica, de ironia, de piedade ou de desdém que constituem a colecção destes pequenos livros, extrair enfim do coração deste mundo decadente e ridículo uma palavra luminosa – uma palavra ao menos 
– verdadeiramente genial e sublime!

Não instruis, não libertas, não emancipas ninguém, ó doce, efémera, sublime ignorada, mas consegues com o simples sentimento o que não sabem fazer com ele os maiores artistas sentimentais e lacrimosos: fixar numa frase o ideal humano da elevação e da dignidade no amor.

A tua palavra divina, registada nestas páginas obscuras, mas sentidamente verdadeiras e honradas, passará alada e cândida por cima do charco revolto das nossas intrigas, das nossas mediocridades e das nossas misérias, no rasgo de um voo inefável e profundo através do céu, como a pomba do dilúvio, anunciando àqueles que olham pensativos para a devastação da torrente que há neste baixo mundo um lugar eternamente puro e sagrado, guardado pelo olhar de Deus: o lugar em que o vosso coração encerra, ó MÃES, o amor dos vossos filhos.

1874

Capítulo XII

In “As Farpas”

Ramalho Ortigão
(1836-1915)

Fonte: Gigantes da Literatura
Por Antônio S. Slva

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