A democracia morreu, viva a democracia!

Um espectro ronda nosso planeta: é o espectro da democracia moribunda. A crise de legitimidade na democracia representativa, expressão frequente na boca de sociólogos e filósofos, pode ser traduzida por cidadãos de saco cheio do sistema político: sempre os mesmos partidos, as mesmas eleições. E esses cidadãos — nós — querem descobrir novas maneiras de chegar ao poder.


A crise da democracia se revela em fenômenos massivos e em estudos e observações de cientistas e historiadores políticos de diferentes vertentes. O que ainda não se vê muito claro no horizonte — e parece que a miopia da maioria da classe política contribui para essa neblina — é o que fazer para que o cidadão insatisfeito volte a se interessar ativamente pela política, antes que a democracia seja substituída por algo muito pior do que os totalitarismos do século 20.

“A democracia está em estado de choque”, anotou Marcos Nobre em Choque de Democracia (Companhia das Letras), escrito a quente depois do junho de 2013. “As reivindicações e passeatas se multiplicam, levantando problemas de bairro e de rua, problemas locais, regionais, nacionais, mundiais, tudo ao mesmo tempo. As demandas vêm de todos os lugares, colocam-se em diferentes alcances e não têm unidade nem organização unitária. Mas hoje a fragmentação é ainda maior: desapareceu a unidade forçada do progressismo como pano de fundo das formulações, incluindo forças políticas conservadoras”, diagnosticou o professor de filosofia da Unicamp.

Em Ruptura (Zahar), lançado há poucos meses, o sociólogo espanhol Manuel Castells detalha esse raio-X. “Existe uma crise mais profunda: a ruptura da relação entre governantes e governados. A desconfiança nas instituições, em quase todo o mundo, deslegitima a representação política e, portanto, nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum”, escreve. Segundo Castells, não é uma questão de opções políticas, de direita ou de esquerda. A ruptura é profunda, tanto em nível emocional quanto cognitivo.

Diante desse vazio, a ascensão do populismo surge como o centro do debate político. Em um dos livros de ciência política mais comentados dos últimos tempos, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt tentam compreender como a eleição de Donald Trump está corroendo o sistema político norte-americano e pode levá-lo à autodestruição. Para eles, o atalho para a autodestruição é a eleição de demagogos, que se transformam em políticos autoritários. “Demagogos extremistas surgem de tempos em tempos em todas as sociedades, mesmo em democracias saudáveis”, escrevem em Como as Democracias Morrem (Zahar).

Polarizações - O enfraquecimento das normas democráticas está enraizado na polarização sectária extrema — uma polarização que se estende além das diferenças políticas e adentra conflitos de raça e cultura. A polarização mata democracias.” A dupla de cientistas políticos está falando de republicanos versus democratas, mas o raciocínio polarizador estende-se a demandas de todo o mundo, conforme cita o brasileiro Pablo Ortellado. “Todas as sociedades estão se polarizando”, afirma o professor de gestão de políticas públicas da USP. Ele cita, além da sociedade brasileira, a norte-americana (com a ascensão de Trump) e a britânica (com a vitória do Brexit) como exemplos do fenômeno. Segundo o pesquisador, os motivos desse fenômeno ainda não estão claros, mas têm acontecido depois de crises nos países. O professor diagnostica que as sociedades estão “hipermobilizadas” e que um lado do espectro político tem “medo” do outro. O desafio é criar a renovação política evitando esse sentimento de pânico em relação ao “outro lado”.

Essa sociedade hipermobilizada é usada por “alguém que vem de fora para corrigir o sistema”. O elenco de falsos outsiders inclui Hitler, Mussolini, Fujimori, Chávez. Todos chegaram ao poder a partir de dentro, via eleições ou alianças políticas poderosas. “As elites acreditaram que o convite para exercer o poder conteria o outsider, levando a uma restauração do controle pelos políticos estabelecidos; mas seus planos saíram pela culatra”, contam Levitsky e Ziblatt. “Uma mistura letal de ambição, medo e cálculos equivocados conspirou para levá-las ao mesmo erro: entregar condescendentemente as chaves do poder a um autocrata em construção.”

E como identificar um político que, tão logo assuma o poder, tentará dissolver os instrumentos democráticos? Para a dupla de cientistas, que estudou todos os autocratas dos séculos 20 e 21, de Hitler a Duterte, passando por Perón e Putin, há quatro principais indicadores: 1) rejeição das regras democráticas do jogo; 2) negação da legitimidade dos oponentes políticos; 3) tolerância ou encorajamento à violência; 4) propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia. Se observar esses traços em um candidato, há grandes chances de que, se eleito, você não vote nas próximas eleições — porque elas nem existirão.

Este é um trecho da reportagem de capa da edição de outubro da GALILEU, que já está nas bancas. Para ler em casa, baixe o app Globo Mais ou assine a revista por R$ 4,90.

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