O “verão vermelho” de 1919: conheça a história do ano em que os brancos mataram centenas de negros nos estados unidos

 Na foto: Daniel Hoskins é mostrado em julho de 1919 com armas depositadas no tribunal do condado de Gregg em Longview, Texas, depois de motins raciais lá. Biblioteca do Congresso / Distribuída pela Associated Press



Homens, mulheres e crianças afro-americanos foram queimados vivos, baleados, enforcados ou espancados até a morte por multidões brancas. Milhares de residências e empresas foram incendiadas, seus proprietários expulsos – muitos para nunca mais voltar.


No verão de 1919, os Estados Unidos ficaram vermelhos de sangue devido à violência racial. No entanto, hoje, 100 anos depois, muitas pessoas nem sabem que isso aconteceu.


Desde pequenas cidades como Elaine, Arkansas, como em lugares de tamanho médio como Annapolis, Maryland, Syracuse e em Nova York, como também em grandes cidades como Washington e Chicago, centenas de homens, mulheres e crianças afro-americanos foram queimados vivos, baleados, enforcados ou espancados até a morte por multidões brancas. Milhares viram suas casas e empresas queimadas e foram expulsas, muitas para nunca mais voltar.


A data ficou marcada como o “Verão Vermelho” (Red Summer) por causa do derramamento de sangue e representou algumas das piores violências de brancos contra negros na história dos EUA.


Além das vidas e fortunas familiares perdidas, os ataques tiveram repercussões de longo alcance, contribuindo para as décadas de desconfiança dos negros acerca da autoridade dos brancos. Mas também estimulou os negros a se defenderem, assim como a seus bairros com punhos e armas; revigorou organizações de direitos civis como a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor – NAACP (em inglês: National Association for the Advancemente of Colored People), levou a uma nova era de ativismo; deu origem a reportagens corajosas de jornalistas negros, como também, influenciou a geração de líderes que lutariam pela igualdade racial décadas depois. Segundo, Saje Mathieu, professora de história da Universidade de Minnesota,”as pessoas que se transformaram em ícones do movimento dos direitos civis foram estimuladas e alavancadas pelas pessoas que sobreviveram ao Verão Vermelho”.


Apesar de tudo isso, não há informações nacionais suficientes sobre o que foi o Verão Vermelho. Os livros didáticos de história ignoram e a maioria dos museus não reconhece isso. A razão? Segundo os historiadores, o fato do Verão Vermelho contradizer a noção pós-Guerra Mundial de que a América estava tornando o mundo seguro e garantindo as democracias plenas. “Ele [o Verão Vermelho] não se encaixa nas histórias legais que contamos”, disse David Krugler, autor da obra “1919, O ano da violência racial: como os afro-americanos reagiram”.


Ventos de transformação


Nesse ano que completa o centenário, várias ações estão acontecendo. No Arkansas, um monumento foi proposto. Vários autores voltaram a escrever sobre o esse verão sangrento. No Brooklyn, no mês de março, diversos corais cantaram músicas sobre o Red Summer, como “And They Lynched Him on a Tree” (e eles [os brancos] lincharam ele [o negro] em uma árvore), tudo com o objetivo de relembrar o centenário do massacre.


Em uma atividade realizada no dia 30 de julho, no Museu e Memorial Nacional da Primeira Guerra Mundial, em Kansas City, a professora Mathieu e o escritor Cameron McWhirter  apresentaram algumas de suas descobertas sobre o tema.


Os pesquisadores acreditam que em um período de 10 meses, mais de 250 afro-americanos foram mortos em pelo menos 25 tumultos nos EUA – linchados por uma horda de brancos  que nunca enfrentou punição. O historiador John Hope Franklin chamou isso de “o maior período de conflitos inter-raciais que os Estados Unidos já testemunhou”.


O derramamento de sangue foi o resultado de uma colisão de forças sociais: homens negros estavam retornando da Primeira Guerra Mundial, esperando os mesmos direitos pelos quais lutaram e sangraram na Europa, enquanto outros afro-americanos estavam indo para o norte para escapar das brutais leis de Jim Crow no sul do país. Os brancos viam os negros como um adversário na competição  por empregos, habitação e poder político. daí, “a limpeza étnica era o objetivo dos manifestantes brancos”, disse William Tuttle, professor aposentado de estudos americanos na Universidade do Kansas e autor do livro “Race Riot: Chicago no Verão Vermelho de 1919”. “Eles queriam matar a maior quantidade de negros que fosse possível, a fim de aterrorizar o resto dos negros, de modo que eles estivessem dispostos a sair e viver em outro lugar ”.


No entanto, a violência não começou nem terminou em 1919. Alguns contam que o momento que marcou o início da era do Verão Vermelho começou com a morte de mais de duas dúzias de afro-americanos em East St. Louis, Illinois, em 1917, e se estendeu até o Massacre de Rosewood de 1923, quando uma cidade negra na Flórida foi destruída. Pelo menos 1.122 afroamericanos foram mortos em violência racial ao longo desses seis anos, pela contagem de Tuttle.


Só em 1919, a violência irrompeu em lugares como Nova York; Memphis, Tennessee; Filadélfia; Charleston, Carolina do Sul; Baltimore; Nova Orleans; Wilmington, Delaware; Omaha, Nebraska; New London, Connecticut; Bisbee, Arizona; Longview, Texas; Knoxville, Tennessee; Norfolk, Virginia; e Putnam County, Georgia. Na capital do país, multidões brancas – muitas formadas por militares – massacraram negros durante todo o fim de semana de 19 a 22 de julho, espancando todos os negros que encontraram pela frente depois de terem ouvidos rumores falsos, espalhados sob a alegação de que uma mulher branca havia sido estuprada por homens negros.


“Na frente do Banco Riggs, os manifestantes espancavam um negro com paus e pedras envoltos em lenços; a figura sangrenta jazia na rua por mais de vinte minutos antes de ser levada ao hospital ”, escreveu Lloyd M. Abernethy na Maryland Historical Magazine, em 1963.“ Sentindo o fracasso da polícia, a turba ficou ainda mais desdenhosa com a autoridade – a ponto de dois negros terem sido diretamente atacados e espancados em frente à Casa Branca. ”


Carter G. Woodson, o historiador que, em 1926, fundou o Mês da História Negra , vivenciou essa violência de perto e relatou: “Eles pegaram um negro e deliberadamente seguraram-no como se fosse uma animal para o abate, então, eles convenientemente trataram de linchá-lo e, após esse ato, atiraram nele ”, e Woodson seguiu relatando: “Eu o ouvi agonizando, em sua luta pela sobrevivência, enquanto corri o mais rápido que pude. Acreditando, a cada instante, que eu seria pego e linchado.”


Em Elaine, Arkansas, pobres meeiros negros que ousaram se juntar a um sindicato foram atacados, e pelo menos 200 afro-americanos foram mortos. Ida B. Wells, mulher negra pioneira no jornalismo, e uma das poucas repórteres a entrevistar vítimas sobreviventes, observou que uma mulher chamada Lula Black foi arrastada de sua fazenda por uma multidão branca depois de dizer que iria se juntar ao sindicato. “Eles a derrubaram, a espancaram na cabeça com suas pistolas, a chutaram por todo o corpo, quase a mataram e depois a levaram para a cadeia”, escreveu Wells em seu relatório “The Arkansas Race Riot”. Eles também mataram Frances Hall, uma empregada idosa e senil, amarraram as suas roupas sob a cabeça, e jogaram o corpo no meio da rodovia, onde ficou exposto até que os soldados chegaram dias depois e o levaram. Jornalistas negras como Wells tiveram um papel importante na divulgação da história.


Para Kevin Strait, curador do Museu Nacional da História e Cultura Afro-americana do Smithsonian, “Jornais negros como o Chicago Defender foram fundamentais para apresentar uma outra perspectiva que representasse por que os afro-americanos estavam nos Estados Unidos, os movitos pelos quais mereciam direitos iguais e como, em alguns casos, justificados nos combates”.


O verão vermelho também marcou uma nova era de resistência negra à injustiça branca, com afro-americanos assumindo as rédeas, se rebelando em números sem precedentes, e matando alguns de seus algozes. Alguns soldados negros que retornaram da Primeira Guerra Mundial lideraram essas ações, usando habilidades que eles refinaram na Europa. “Os alemães não eram o inimigo – o inimigo estava bem aqui em casa”, disse Harry Haywood em sua autobiografia, “Um Comunista Negro na Luta pela Liberdade: A Vida de Harry Haywood”.


Em Washington, a jovem Carrie Johnson, de apenas 17 anos, tornou-se uma heroína por atirar em invasores brancos em sua vizinhança. Ela matou um policial branco que invadiu seu quarto no segundo andar e, após alegar, legítima defesa sua condenação por homicídio culposo foi anulada.


A NAACP ganhou cerca de 100.000 membros naquele ano, disse McWhirter, autor de “Verão Vermelho: O Verão de 1919 e o Despertar da América Negra”. Logo, os negros estavam “indo ao Congresso e, desse modo, pressionando parlamentares e senadores para aprovar leis anti-linchamento.


Segundo Krugler, as lições do Verão Vermelho repercutiriam após a Segunda Guerra Mundial. “Você tem uma situação semelhante em que os afro-americanos fizeram sua parte para tornar o mundo um local mais seguro para a democracia, e quando os veteranos negros chegaram em casa, e muitos deles estavam vivos ou ouviram as histórias do que aconteceu em 1919″, eles disseram: Nunca mais.”


Fonte: Carta Capital

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