Que liga feminismo à legalização das drogas?


Ambos lutam pela autonomia das pessoas sobre os próprios corpos. Único limite desta liberdade deve ser bem-estar do próximo, ou próxima

No sábado, 26 de abril, a “Marcha da Maconha” ocupou as ruas da região central de São Paulo reivindicando a legalização da cannabis e questionando a chamada “guerra às drogas”. No ano passado, o Uruguai se tornou o primeiro país da América Latina a descriminalizar o uso da planta. Nos EUA, são alguns os estados em que seu uso já é permitido em certos casos. A Holanda é conhecida internacionalmente pela tolerância oficial ao entorpecente.

Se retomarmos historicamente a correlação de forças que resultou na proibição da maconha nas décadas de 1920 e 1930 (primeiro nos EUA e, em seguida, com a pressão política bem aplicada, no resto do mundo), veremos que a decisão é altamente controversa, além de recente. A legalização da maconha é claramente um tema em disputa.

A conexão entre feminismo e anti-proibicionismo é, pois, relativamente simples de entender: trata-se, em ambos os casos, de uma luta pela autonomia das pessoas sobre os próprios corpos.

Ora, se a batalha feminista é pela autonomia sobre o corpo, não faz sentido defender que o Estado intervenha violentamente nas decisões relativas ao uso de drogas (que, no fim das contas, não são mais do que uma escolha para o corpo). Se a batalha anti-proibicionista visa a liberdade de intervir no próprio corpo sem represália do Estado, não faz sentido que os anti-proibicionistas sejam, por exemplo, contra a legalização do aborto.

O princípio é exatamente o mesmo: que o Estado regulamente a produção de substâncias, fiscalize quando (e quanto) for necessário, regulamente as práticas de comercialização e distribuição/acesso a essas substâncias e procedimentos, sem que a sua ação se concentre na escolha individual de alteração do corpo. Outra causa feminista que parte desse princípio é o direito pleno e livre à cirurgia plástica genital ou mamoplastia para homens e mulheres transgênero.

Outro ponto em comum sobre a legalização de tais práticas (aborto ou consumo de drogas, por exemplo) é a possibilidade que essa legalização oferece de construirmos conhecimento sobre elas. Num contexto de ilegalidade e criminalização, todas as pesquisas sobre a questão têm seu potencial diminuído. Afinal de contas, as implicações para as pessoas que assumem essas práticas são extremamente graves. Como saber de fato qual o consumo real de drogas? Como saber como opera precisamente essa “economia das drogas”? Como elaborar políticas (inclusive de redução de danos) sem conhecer empiricamente os sistemas dessa prática? Essa discussão, já muito concreta para as feministas no caso do aborto, também funciona para o caso do consumo de drogas.

Não me refiro, por fim, apenas à maconha. No sentido da autonomia sobre o corpo, defendo que nossa luta seja necessariamente radical. Para que as pessoas possam controlar seus próprios corpos o quanto e como desejarem, inclusive se isso significa risco de morte para si mesmas. O único limite necessário, então, seria o bem-estar físico do próximo (ou da próxima) – e para isso seguimos tendo um sistema judiciário.

Quer dizer, o fato de defender que uma pessoa possa usar livremente as drogas que quiser não implica defender que, caso essa pessoa mate alguém sob o efeito da droga, ela seja absolvida necessariamente de seu crime. Significa apenas que a autonomia de todos e todas sobre nossos corpos não deve estar sujeita à suposição irreal de que todos que usarem drogas assassinariam alguém. Convenhamos: as drogas são proibidas e não morre menos gente por causa dessa proibição (a bem da verdade, muito pelo contrário, já que a proibição gera uma série de relações de poder invisibilizadas, leis não-oficiais paralelas, etc). O mesmo acontece com – seguindo o exemplo escolhido – o aborto.

No fim das contas, me parece que a falta de diálogo entre o feminismo e o anti-proibicionismo é altamente contraproducente para ambas as causas e, definitivamente, é um obstáculo que precisa ser superado na construção de um mundo mais igualitário, justo, democrático e – sobretudo – LIVRE.

Fonte: outraspalavras
Por Marília Moschkovitch

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