Como as traições têm influenciado o rumo da história

A história está cheia de casos de pessoas muito confiáveis que se revelaram capazes de delatar e prejudicar os melhores amigos e a pátria. Conheça a sórdida - e ambígua - saga da traição

Um dos episódios mais bem guardados da Revolução Cubana tinha no bojo uma traição em família. E só veio à tona em outubro, quando Juanita Castro lançou o livro de memórias Fidel y Raúl, mis Hermanos. La Historia Secreta, co-escrito com a jornalista María Antonieta Collins. Quinta dos sete filhos de Ángel Castro e Lina Ruz González, Juanita traiu seus irmãos trabalhando para a CIA entre 1961 e 1964, em plena Havana. "Foi uma relação estreita com o arqui-inimigo dos Castro", diz a jornalista sobre a informante de 76 anos, que vive no exílio há 45, primeiro no México e depois nos Estados Unidos. Nesse período, ela nunca falou com os irmãos.

A traição está entre os capítulos mais sombrios - e saborosos - da História ocidental. A própria Bíblia cita vários casos, nenhum tão peculiar quanto aquele em família. Primogênito de Adão e Eva, Caim ficou enciumado da predileção de Deus por seu irmão caçula. Levou Abel para um campo deserto, onde o matou. À traição, subentende-se. "Agora és maldito e expulso do solo fértil que abriu a boca para receber de tua mão o sangue de teu irmão", ordenou Javé ao assassino. "Na cultura do Ocidente não existe delito mais grave que o de defraudar a confiança adquirida", afirma José Manuel Lechado, em Traidores que Cambiaron La Historia ("Traidores que mudaram a História", inédito no Brasil). Mas, sob perspectivas distintas, certos personagens desleais podem até ser heróis. "Na visão dos ingleses, George Washington (protagonista da independência americana) foi um grande traidor", diz Lechado. Seja bem-vindo à narrativa dos atos sorrateiros. E cuidado com quem está às suas costas. Já diz o ditado: "Deus me livre dos amigos, porque os inimigos eu sei quem são".

A palavra "traição", muito além da infidelidade conjugal, mudou de sentido ao longo do tempo. "Hoje ela é acima de tudo um crime contra o Estado. Mas nem sempre foi esse o caso", afirma Alan Orr em Treason and the State ("A traição e o Estado", sem edição em português). Na Antiguidade, trair era agir contra os deuses. Foi o pecado que cometeu, na visão de seus súditos, o faraó Akenaton. No século 14 a.C., ele aboliu a antiga religião egípcia e seu panteão para determinar a adoração monoteísta a Aton e proclamar-se único representante dele. Na Batalha das Termópilas (480 a.C.), entre espartanos e persas, o grego Efialto entregou aos inimigos o segredo de uma estreita passagem entre as montanhas, até a retaguarda grega. Por sua perfídia, vista como uma ofensa direta ao deus da guerra, Ares, Efialto foi amaldiçoado.

Trair começou a ganhar status laico e jurídico na Roma antiga. Segundo o historiador do direito Simon Hirsch, os romanos inventaram o conceito de crimen maiestatis (lesa-majestade) para atos contra a soberania de Estado, o que incluía excentricidades como destruir a estátua do imperador.

Na Europa, durante a Idade Média, o conceito passou a se referir ao atentado contra a vida do senhor feudal, do rei ou do papa. Mas e se um rei se insurgisse contra o papa? Isso seria traição? E o barão que se rebelasse contra o monarca? No século 13, a opinião dominante entre os juristas era a de que, em ambos os casos, a quebra de hierarquia configurava o delito. No imaginário do aldeão médio, contudo, não havia pior infame que Judas Iscariotes. Com um beijo, entregou Jesus por 30 moedas de ouro. O cristianismo transformou a traição em pecado gravíssimo. Mas o ato do apóstolo demorou a se disseminar. "Até a década de 60 do século I, diferentes memórias parecem sugerir, no seu todo, que os cristãos desconheciam o tema da traição de Jesus", diz André Chevitarese, professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A malhação de Judas só começou por volta do século 4.

Óleo fervente e veneno

Foi na Inglaterra de Henrique VIII que a traição ganhou sua acepção moderna, de crime contra o Estado. O tema é especialmente caro aos ingleses, que usam três palavras para designá-lo: treason, de uso jurídico, e treachery e betrayal, de uso comum. Segundo Orr, o conceito legal moderno nasceu das formulações dos juristas das eras Tudor (século 16) e Stuart (século 17). Ainda não havia separação clara entre Estado e monarca, mas a nova concepção já era diferente da medieval. O crime contra o Estado (que incluía o rei e altos cargos eclesiásticos) era chamado de Alta Traição (High Treason). Em 1530, um cozinheiro condenado por tentar envenenar o bispo de Rochester foi jogado num panelão de óleo fervente. Os reis utilizavam a mesma regra para neutralizar inimigos. Ela ensejou várias condenações irregulares, como a de Ana Bolena, segunda esposa de Henrique VIII, em 1536. Também havia uma "traição menor" (Petty Treason), que contemplava, entre outros delitos, o de mulheres que matavam maridos. Essa lei só foi abolida em 1828.

O método mais usado para se livrar de pessoas indesejadas era o veneno. Só em Paris havia cerca de 30 mil "especialistas" que ofereciam seus serviços por encomenda. Envenenado, sir Thomas Overbury foi vítima do mais mirabolante caso de Alta Traição, em 1613, contra o rei James I da Casa de Stuart. Tudo não passou de uma tramoia de Lady Frances Howard. Desejando casar-se com o conde de Rochester, Robert Carr, sofreu a enfática oposição de Overbury, amigo íntimo do assediado. Ela persuadiu o rei a dar um cargo para o desafeto bem longe dali - na Rússia. Desesperado, Thomas recusou a "promoção". A dama, então, convenceu James I de que a negativa do nobre fora motivada por uma conspiração. Notório paranoico, o rei mandou trancar Overbury na Torre de Londres. Ele apareceu morto em 15 de setembro de 1613. E Frances, enfim, casou-se com o conde.


No Brasil, um dos episódios mais conhecidos de traição é o de Domingos Fernandes Calabar. Contrabandista e senhor de engenho em Pernambuco, em 1632 decidiu juntar-se aos holandeses da Companhia das Índias Ocidentais, que pilhavam o Nordeste desde a década anterior. Os préstimos de Calabar foram vitais para que a Holanda estendesse seus domínios de Pernambuco até o Rio Grande do Norte. Capturado pelos portugueses em 1635, ele foi estrangulado e esquartejado. Já José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, construiu sua infâmia durante a Ditadura. De líder da Associação dos Marinheiros, passou a guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária e então a delator. Preso em 1970, foi convencido pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury a entregar os companheiros. Em janeiro de 1973, o cabo serviu de isca para o extermínio de seis dos principais militantes da VPR, num sítio em Pernambuco. Entre as vítimas estava Soledad Barret Viedma, companheira dele, grávida de sete meses. Depois disso, teve de sumir. Fez uma cirurgia plástica e mudou de identidade, bancado pelo regime.

A história mostra que às traições não faltam ambiguidades. Para Juanita Castro, os verdadeiros pérfidos foram seus irmãos. Devotada revolucionária, responsável pela construção de clínicas e hospitais em Cuba, ficou desapontada com Fidel e Raúl, quando tiveram início as prisões, fuzilamentos e confisco de propriedades. Nessa época, ela tinha laços estreitos com o então embaixador da representação do Brasil em Havana, Vasco Leitão da Cunha, e sua mulher, Virgínia. O casal ofereceu asilo a muitos rebeldes durante a ditadura de Fulgencio Batista. Inclusive a Juanita, em 1958. Três anos depois, Virgínia procurou a irmã de Fidel - já desencantada com a revolução - para que ela se reunisse "com amigos". Tais amigos eram da CIA. Juanita aceitou repassar informações, desde que nada fosse usado nas tentativas de assassinato a El Comandante. Em 1964, depois da morte da mãe, Raúl conseguiu-lhe um visto para ir ao México. Lá, Juanita rompeu formalmente com os irmãos.

"A traição é um conceito extraordinariamente ambíguo, que foi utilizado - e ainda o é - para combater inimigos políticos e também para justificar fracassos", diz Lechado. Isso vale para o Brasil, como ilustra o caso de Calabar. Em 1975, um tribunal simulado, em João Pessoa, julgou que o ex-senhor de engenho agiu em favor dos conterrâneos e o absolveu. De traidor passou a mártir.

Galeria da infâmia

Uma pequena seleção do clube que insiste em crescer

Conde Ugolino della Gherardesca

Membro do partido Gibelino, aliado ao imperador, ele comandava Pisa no início do século 13. O partido rival, o Guelfo, dominava Gênova e Florença. Acusado pelo arcebispo Ubaldini, um desafeto, de aderir ao guelfos, Ugolino foi destituído.Ambos aparecem como traidores na Divina Comédia.

Mary Stuart

Pretendente católica ao trono inglês, Mary - chamada carinhosamente de "rainha dos escoceses" (terra dos Stuart) - foi encarcerada por ordem da rainha Elizabeth I, que temia uma trama dos católicos contra ela, anglicana. Após 19 anos na prisão, Mary Stuart foi executada por Alta Traição em 1587.

Joaquim Silvério dos Reis

Em 1789, entregou os inconfidentes mineiros para ter suas dívidas com a coroa portuguesa perdoadas. Seu amigo Tiradentes acabou enforcado e esquartejado. Depois, Silvério ganhou uma pensão vitalícia de Portugal e foi até recebido por dom João.

Charles Maurice de Talleyrand-Périgord

Ministro das Relações Exteriores de Napoleão, dizia que "traição era uma questão de datas". Virou agente da Rússia e entregou segredos do império francês aos austríacos. Em 1815, organizou a deposição de Napoleão e a volta da monarquia.

Jin Bihui

Conhecida como "Mata Hari do Oriente", a manchu foi espiã para o Japão na corte do último imperador da China, Pu Yi. Bela e inteligente, era amante do principal assessor militar do imperador. Gostava de usar roupas masculinas. Segundo uma versão, sofreu abuso sexual na infância. Foi executada como traidora pelo governo nacionalista chinês em 1948.

Heinrich Himmler

O chefe da SS abandonou Hitler e negociou uma rendição da Alemanha com os EUA e a Grã-Bretanha quando viu que o nazismo estava com os dias contados. Hitler, ao descobrir a traição, ficou furioso. Himmler terminou preso pelo exército inglês em maio de 1945. Depois, suicidou-se.

Augusto Pinochet

O general Augusto José Ramón Pinochet Ugarte (1915-2006) foi Chefe do Exército do Chile no fim do governo socialista de Salvador Allende. Quando Pinochet orquestrou o golpe de 11 de setembro de 1973, Allende foi pego de surpresa: considerava-o um bom amigo. Allende suicidou-se e o general instaurou um sangrento regime militar que duraria até 1990.

Tommaso Buscetta

Foi importante membro da Cosa Nostra e ficou rico traficando drogas no Brasil. Preso em 1984 e deportado para a Itália, fez um acordo com a Justiça local, entregando o esquema da Máfia. Foi o primeiro a quebrar o código de silêncio da organização. Faleceu em 2000 em Nova York, livre, mas muitos de seus parentes foram mortos por causa da traição.

Inesquecível colaboracionismo

O auxílio às tropas de Adolf Hitler deixou muitas cicatrizes 

A cooperação com os nazistas é um capítulo da Segunda Guerra que muitos franceses gostariam de apagar. Em 1940, o Norte do país foi ocupado pelo exército de Hitler. Para manter a nação funcionando, assumiu o poder um governo fantoche , em Vichy, liderado pelo marechal Philippe Pétain. Um dos mais notórios colaboracionistas foi Pierre Laval. Como ministro das Relações Exteriores, ele autorizou a deportação de 15 mil judeus. Em 1945, foi considerado culpado de Alta Traição e fuzilado. Outras pessoas simpáticas ao invasor, mesmo aquelas indiretas, como Coco Chanel, encararam o "julgamento moral" dos compatriotas. A estilista era amante do espião Hans Gunther von Dincklage. Graças a ele, pôde manter seu apartamento num hotel de Paris. Não se sabe até que ponto ela conhecia segredos da espionagem nazista, mas, ao fim da guerra, saiu de Paris e refugiou-se na Suíça, onde permaneceu até 1954. Foi então que criou o glamouroso terninho Chanel. E o sucesso ofuscou a mácula da guerra. Já na Inglaterra, o oficial do exército William Joyce foi condenado à forca por fazer propaganda nazista no rádio. Conhecido como Lorde Haw Haw, ele transmitia de Berlim, para as ilhas britânicas, exaltações ao Führer.

Saiba mais

LIVRO: Traidores que Cambiaron la Historia, José Manuel Lechado, Ediciones Espejo de Tinta, 2006
O autor espanhol narra as mudanças no conceito de traição no Ocidente e conta casos famosos. A obra ainda não foi editada em português.

Fonte: guiadoestudante
Ilustrações: Murilo Maciel

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