A educação no tempo de Eça de Queiroz (século XIX)

"Depois, comecei a subir o duro calvário dos preparatórios: e, desde logo, a coisa importante para o Estado foi que eu soubesse bem francês. Decerto, o Estado ensinava-me outras disciplinas, entre as quais duas, horrendas e grotescas, que se chamavam, se bem recordo, a lógica e a retórica. Uma era destinada que eu soubesse bem pensar, e a outra, correlativamente, a que eu soubesse bem escrever. Eu tinha então doze anos. Para eu saber pensar, o Estado e os seus professores forçavam-me a decorar diariamente laudas de definições, de fórmulas misteriosas, que continham a essência, o segredo das coisas, compiladas do francês, de velhos compêndios de escolástica. Era terrível! O lente, casmurro e soturno, perguntava:

— Quantos são os impossíveis?

Eu devia papaguear em voz clara:

— Dois. O impossível físico, que o homem não pode fazer, mas Deus pode; por exemplo: ressuscitar. O impossível metafísico, que nem ao homem nem a Deus mesmo é permitido, como, por exemplo, que uma coisa, ao mesmo tempo, seja e não seja!

{...}

O seu desejo (do Estado português) estava todo em que eu soubesse bem francês. Quando cheguei na diligência a Coimbra, para fazer o exame de lógica, retórica e francês, o presidente da mesa, professor do liceu, velho amável e miudinho, de batina muito asseada, perguntou logo às pessoas carinhosas que se interessavam por mim:

— Sabe ele o seu francês? 
E quando lhe foi garantido que eu recitava Racine tão bem como o velho 
Talma, o excelente velho atirou as mãos ao ar, num imenso alívio. 
— Então está tudo ótimo! Temos homem!"

Eça de Queiroz, Notas Contemporâneas, Centaur Editions, 2015. págs, 164;166

Imagem: Willem Geets (1838/1919), estudante em teste

Fonte: Filosofia e Literatura

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