“Todos desejam a morte do pai”: “Os irmãos Karamázov” — Fiódor Dostoiévski

Não é preciso dizer muito para ressaltar a importância de uma obra como “Os irmãos Karamázov”. Ponto culminante da ficção de Dostoiévski, o livro aglutina toda a constelação de temas e preocupações presentes em obras anteriores do autor: estão aqui o crime, a culpa, as reflexões sobre a fé, a psicologia, além de um enredo carregado por personagens e diálogos muito bem desenvolvidos.

Xilogravura de Lasar Segall

O compatriota de Dostoiévski, o escritor Vladimir Nabokov descreveu o livro como “uma história de detetive em slow-motion”, um “aprimoramento das técnicas de histórias de detetive que Dostoiévski vinha utilizando em seus outros romances”. Definir “Os irmãos Karamázov” como uma história de detetive me parece preciso. Eliminadas as subtramas, digressões, reminiscências e histórias paralelas (que ocupam parte considerável e não menos interessante do livro), o que temos é a investigação da morte de Fiódor Karamázov, em que seus quatro filhos (um deles, bastardo) são os principais suspeitos.

Toda esta trama, aparentemente simples, se complexifica diante da profundidade de cada personagem. Não há nenhum coadjuvante que deixe de despertar interesse e atenção no leitor. Todas as personagens são dotadas de muita concretude. Claro que a figura do pai Karamázov, os filhos Dimítri, Ivan e Aliócha, o bastardo Smierdiakóv e a cobiçada Grúchenka terminam por destacar-se em relação as demais devido à centralidade na trama; mas personagens como o hieromonge Zossima, o seminarista Rakítin, a criada Fiênia e o menino Kólia, grande admirador de Aliócha, dentre outras, são dotadas de tantas idiossincrasias que nos tornamos ao mesmo tempo íntimos de suas personalidades e admiradores de sua construção.

O grande alicerce da concretude das personagens está principalmente nos diálogos. Cada personagem tem um ritmo, uma respiração distinta. A fala de Dimítri, carregada de reticências e exclamações, mostra as idas e vindas de alguém confuso e emocionalmente frágil; a fala aparentemente firme e racional de Ivan é incapaz de esconder seus incômodos e inquietações, por vezes proferindo o que não desejava dizer, contrariado pelos próprios impulsos; a fala canastrona, cheia de piadas e frases inconvenientes de Fiódor revela sua personalidade inconsequente e problemática, incapaz de qualquer responsabilidade — isso se repetindo, como já observamos, não só para as personagens centrais, mas mesmo para figuras menores dentro da trama.

O narrador guia a leitura através de constantes intromissões, impõe conscientes pausas e bloqueios na narrativa, por vezes pede paciência e interrompe o acompanhamento de determinada personagem para saltar a outro núcleo de ação, tudo isso contribuindo para o clima de inquietação em uma história que esmiúça um curto espaço de tempo (grande parte da primeira metade da obra se passa em um único dia, acompanhando Aliócha em seus encontros com outros personagens). A narração varia entre momentos arrastados e impulsos frenéticos, sendo o próprio narrador uma figura presente como testemunha em momentos da narrativa. No final da história, durante o julgamento, por exemplo, ele pede desculpas diversas vezes por não recordar muito bem alguns momentos do tribunal, ter ele também se confundido etc. Esse é um recurso interessante que ajuda a aprofundar o clima de estranheza da história.

Todas as personagens têm muito a dizer, e em suas falas transmitem opiniões e distintas visões de mundo. Por meio das personagens o romance reinsere questões presentes em outras obras do russo. A religião é um tema constante, seja nos diálogos entre o ateu Ivan e o seminarista Aliócha, seja nas parábolas contadas por diversas personagens; a culpa, o arrependimento, o fardo do pecado e do crime também surgem como questões a serem debatidas, de modo a dotar todo o mundo do romance de um sentimento de temor, opressão psicológica e até mesmo medo e paranoia; são muitas as cenas em que personagens estão às portas da loucura, temendo o próprio enlouquecimento ou alucinando. Para contribuir com esse clima de temor, inúmeras são as referências bíblicas presentes nas passagens e nos diálogos, recurso que só agrava a tensão da narrativa.

Não há como falar na obra de Dostoiévski sem ao menor traçar alguns comentários sobre o próprio, uma figura que até hoje desperta imensa curiosidade e é de significativa importância histórica. A longa citação que se segue, do escritor alemão Thomas Mann, extraída de um ensaio chamado “Dostoiévski, com moderação”, a meu ver dá uma pequena mostra do juízo do diabólico autor:

“Não há dúvida de que o subconsciente e mesmo a consciência desse gigantesco criador sempre estiveram carregados de um pesado sentimento de culpa, o sentimento da delinquência — e que esse sentimento não foi de modo nenhum apenas do tipo hipocondríaco. Tinha a ver com sua doença, que era a doença ‘sagrada’, sobretudo a doença mística — a epilepsia. Sofria dela desde jovem, mas a doença se agravou de forma fatal quando do processo por conspiração política movido arbitrariamente contra ele em 1849, aos vinte e oito anos, e diante do choque da sentença de morte (já estava no cadafalso e via a morte de frente quando, no último instante, recebeu indulto e foi mandado para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria) — experiências que, em sua opinião, só podiam terminar com a exaustão de suas forças espirituais e físicas, com a morte ou a loucura. As crises ocorriam em média uma vez por mês, mas também com mais frequência, chegando a duas vezes por semana. Ele as descreveu muitas vezes, em relatos diretos ou transferindo a moléstia para figuras psicologicamente privilegiadas de seus romances, o terrível Smerdiakov (um dos irmãos Karamázov), o príncipe Míchkin, herói de O idiota, o niilista e extático Kirilov de Os demônios. Segundo a sua narrativa, a ‘doença das quedas’ tem duas características: o sentimento incomparável de êxtase, a iluminação interior, a harmonia, o gozo extremo que por alguns instantes prenuncia o grito desarticulado, já não mais humano, e a convulsão — e o estado de terrível depressão e tristeza profunda, a devastação do espírito e o abandono que se seguem. Esta reação me parece ainda mais definidora da natureza da doença do que o êxtase que introduz o ataque. Esse êxtase é descrito por Dostoiévski como sendo de tal modo intenso e doce que ‘pela bênção daqueles poucos segundos poderíamos sacrificar anos da vida ou mesmo a vida inteira’. Mas a ressaca extrema que se segue, segundo o relato do grande doente, fazia com que ele se ‘sentisse como um criminoso’, parecendo-lhe que carregava uma culpa desconhecida, um grave e abominável ato.”

Embora as opiniões de Thomas Mann sobre a epilepsia pareçam exageradas e datadas, considero estes fragmentos interessantes por apontar o quão perturbada era a alma de Dostoiévski. O seguinte fragmento continua a interpretação de Mann sobre a influência da doença na personalidade de Dostoiévski e mostra algo que o escritor alemão chamou de “fantasia moral” de Doistoiévski:

“Não sei o que os médicos de doenças nervosas pensam sobre a ‘doença sagrada’, mas em minha opinião ela indubitavelmente tem suas raízes no campo sexual e é uma forma selvagem e explosiva de sua dinâmica, um ato sexual deslocado e transfigurado, uma devassidão mística. Repito que o estado seguinte de arrependimento e miséria, o estranho sentimento de culpa, parece a mim uma evidência maior do que os segundos anteriores de gozo pelos quais ‘poderíamos sacrificar nossa vida’. Por mais que a doença ameaçasse a lucidez de Dostoiévski, o fato é que seu gênio está tão intimamente associado a ela e é tão tingido por ela que sua iniciação psicológica, seu conhecimento do crime e daquilo que o Apocalipse chama de ‘profundezas satânicas’ — principalmente sua capacidade de insinuar uma culpa misteriosa e fazer da doença o pano de fundo da existência de suas criaturas em parte terríveis — estão inseparavelmente ligados a ela. Assim, no passado de Svidrigailov (em Crime e castigo) ‘existe uma questão criminosa com um gostinho de crueza animal e, por assim dizer, fantástica, pela qual certamente ele teria sido enviado para a Sibéria’. Cabe à imaginação — mais ou menos cúmplice — do leitor adivinhar de que se trata: aparentemente, um crime na área da volúpia, provavelmente uma violação de um menor de idade — pois este também é o segredo ou uma parte do segredo na vida daquele gélido senhor [Herrenmensch] Stavrogin de Os demônios, cheio de desprezo pelos outros, idolatrado na poeira por naturezas mais frágeis, talvez a figura mais tenebrosamente sedutora da literatura universal. Há um trecho postumamente editado do romance, a ‘confissão de Stavrogin’, em que este, entre outras coisas, fala do estupro de uma menina. Segundo Merejkovski, é um fragmento tremendo, repleto de um realismo terrível, que ultrapassa os limites da arte. Ao que tudo indica, essa transgressão vil ocupou constantemente a fantasia moral do escritor. Dizem que um dia ele teria confessado um pecado pessoal desse tipo ao seu famoso colega Turguêniev, a quem odiava e desprezava por conta de suas simpatias pela Europa Ocidental — certamente uma confissão inventada, com a qual ele só quis assustar e confundir Turguêniev, que era claramente humano e nada satânico. Certa vez, em Petersburgo, quando tinha por volta de quarenta anos e já era o festejado autor de um livro que teria feito o próprio czar chorar, rodeado de uma família na qual havia crianças e jovens moças, ele contou sobre um plano literário de sua juventude, um romance em que um senhor feudal, um homem remediado, honorável e agradável, subitamente se lembra de que, vinte anos antes, após uma noite de bebidas e atiçado por amigos ébrios, teria violentado uma menina de dez anos
“’Fiódor Mikhailovich!’, exclamou a mãe, juntando as mãos por cima da cabeça. ‘Tenha piedade! As crianças estão escutando!’”

“Deve ter sido mesmo um sujeito estranho, esse Fiódor Mikhailovich.”

Felizmente, Fiódor Mikhailovich foi bem sucedido em utilizar sua estranheza para a construção de uma obra-prima. “Os irmãos Karamázov” é um romance sobre um crime, um assassinato, mas não necessita de um único culpado. Não há personagem no livro que também não se sinta culpada, que possa ser completamente inocentada diante da morte do pai. No fim, a pergunta “quem matou?” não importa. Não há ninguém digno do título de inocente no mundo de Dostoiévski. E o leitor ao entrar nesse mundo torna-se, também, um cúmplice.

Fonte: Medium
Por Wibsson

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