Amélia Bevilaqua: excluída da Academia Brasileira de Letras virou símbolo de vanguarda

“[...] só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário. As mesmas condições, menos a de nacionalidade, exigem-se para os membros correspondentes”.


O Artigo 2 do Regimento Interno da Academia Brasileira de Letras, que vigorou desde o início da sua criação, em 1897, hoje talvez não caiba uma discussão acerca de gênero. Mas naquela época, diante de uma sociedade machista com um grupo seleto de grandes nomes de intelectuais endinheirados, a entrada de uma mulher seria algo incômodo, criando intrigas internas. Uma piauiense foi uma das primeiras a permear a polêmica.

De família abastada, a piauiense nascida em Jerumenha em 1860, Amélia de Freitas Bevilacqua era a filha mais velha do desembargador Manoel de Freitas, magistrado e presidente das Províncias do Maranhão e Pernambuco. A educação de berço e o gosto pela literatura a fizeram uma mulher de destaque e, com criação de revistas e publicação de livros em Recife. Ganhou ainda mais notoriedade após o seu casamento com Clóvis Bevilacqua, em 1884, um dos mais importantes juristas do país, membro da Academia Brasileira de Letras e responsável pela elaboração do esboço do primeiro Código Civil Brasileiro.

Muito longe de ser a Amélia da música cantada por Chico Buarque, ela dedicava-se à literatura e era à frente de sua época, sendo a primeira a tentar, com um pedido formal, a entrada na Academia Brasileira de Letras. Foi rejeitada por ser mulher e com a justificativa que o referido Artigo do primeiro parágrafo refere-se aos “brasileiros”. Uma confusão de gênero como desculpa para atenuar a participação feminina e reforçar os padrões misóginos da década de 1930.

A polêmica já permeava por anos. Arquivos da Biblioteca Lúcio de Mendonça indicam que a discussão iniciou no ano de 1911, quando foi cogitado o nome da filóloga Carolina Michaelis para compor o quadro na sucessão de Léon Tolstoi, falecido em 1910 e ocupante da cadeira 173. 

A piauiense Amélia de Freitas foi mais longe. Como já integrava o quadro de intelectuais da Academia Piauiense de Letras –ocupava a cadeira 23-, tentou, por intermédio do marido, ocupar a cadeira 22 da ABL. Houve uma divisão entre os membros, mas prevaleceu a interpretação literal do Estatuto, que para os moldes sociais da época, excluíam as mulheres. Após o pedido da esposa negado, Clóvis, muito ressentido, nunca mais retornou à Academia.

Amélia respondeu à negativa com o que mais sabia fazer. De acordo com um estudo da pesquisadora Doutora Michele Asmar Fanin, publicado na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, intitulado “A (in)elegibilidade feminina na Academia Brasileira de Letras”, a insatisfação de Amélia foi registrado em um volume chamado “A Academia Brasileira de Letras e Amélia Beviláqua: documentos histórico-literários”, escrito por ela em 1930. “Fiquei indecisa. Não sabia mesmo o que devesse responder; senti uma espécie de aniquilamento de vida, talvez paralisação das forças imediatamente suspensas pela hesitação moral [...]. A Academia, afirma o Dr. Constâncio Alves, não quis aceitar [o nome de] Júlia Lopes de Almeida e mais tarde recusou o de Carolina Michaëlis para sócia correspondente. Que prova isso? O ponto de vista errado, o misogenismo da Academia, que não soube fazer justiça à romancista brasileira nem à notável escritora Carolina Michaelis, a quem a Academia de Ciências de Lisboa ofereceu uma cadeira. Porém essas escritoras nada propuseram; eu fui oficialmente repelida, e, assim, é muito mais ofensiva a recusa”.

A polêmica seguiu por muitos anos com uma angústia devido o rompimento do jurista Clóvis Bevilacqua. Mas somente em 1970 o acadêmico Osvaldo Orico apresentou uma proposta para que fosse alterado o artigo 17 do Regimento Interno da Academia. A mudança permitiria que as mulheres pudessem inscrever-se para as vagas da entidade, mas só em 1976 a emenda foi aprovada. Em 1977 Rachel de Queiroz foi eleita, sendo a primeira acadêmica. Quatro anos depois foi a vez da escritora Dinah Silveira de Queiroz.

Entre as suas publicações, estão os livros 'Angústia', 'Impressões', 'Jeannette' entre outros, bem como vários coletivos com o marido. Morreu em 1946 no Rio de Janeiro (RJ).

Fonte: Cidade Verde
Diego Iglesias
Redacao@cidadeverde.com

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