Capa do livro "As pegadas do Curupira"Imagem: Reprodução |
No país, ao longo dos séculos, os estudos folclóricos tiveram como referência Amadeu Amaral e Sílvio Romero no século XIX; no XX, Luís da Câmara Cascudo, Florestan Fernandes, Mário de Andrade, Monteiro Lobato. Buscando a identidade nacional brasileira na literatura, estes atores do folclore se voltaram para narrativas consideradas populares e regionais com vistas a firmar a brasilidade da cultura nacional. Sílvio Romero e Monteiro Lobato recordemos, eram membros da Sociedade Eugênica de São Paulo, movimento racista que buscou exterminar sistematicamente no Brasil, os sujeitos negros e povos indígenas física e simbolicamente. Enquanto os corpos negros e indígenas eram assassinados nos séculos passados - e o são ainda hoje -, as narrativas, os seres, as propriedades intelectuais desses povos eram tomados como símbolos da nacionalidade do país.
Como eugenistas, Romero e Lobato defendiam o mito da democracia racial, isto é, a ideia de povo brasileiro formado pelas três "raças". O projeto colonizador previa o extermínio físico desses povos. Paradoxalmente, usavam a apropriação dos conhecimentos imemoriais negros e indígenas para forjar a identidade brasileira como produto das três "raças".
O estudo folclórico, já próximo das ciências humanas e sociais no país, graças a Mário de Andrade, ganhou fôlego na década de 1940, com a UNESCO que recomendou o estudo e preservação do folclore nacional. Para o país, isso significou a criação da Comissão Nacional do Folclore, na data de 1947. O desdobramento da Comissão foi a organização do I Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, em que participam Mário de Andrade, Câmara Cascudo, Florestan Fernandes, cânones da academia e literatura brasileira. O documento resultante do I Congresso ficou conhecida como Carta do Folclore Brasileiro, onde se estabeleceu que o estudo do folclore era parte das ciências antropológicas e culturais.
Folclore e antropologia
No início do século XX, a antropologia insistia que os povos indígenas eram pré-modernos (tradicionais, daí a razão de eu refutar o termo), a-históricos, "categoria transitória", isto é, povos que na linha evolutiva da humanidade estavam no estágio inicial, mas com assistência do Estado, chegariam à civilização, ao posto de "integrados" à sociedade nacional, seriam, enfim, civilizados. A visão racista proporcionou ao Estado a desarticulação de sociedades e fomentou o ataque à identidade indígena que só seriam superadas juridicamente em 1988, com a promulgação da Constituição Federal.
O Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais, apenas em 1918 seria reduzido a sigla para SPI, criado pelo decreto nº 8.072/1910 foi a instituição responsável por acompanhar os povos indígenas na pseudo "transitoriedade". Roquette-Pinto, antropólogo, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da Academia Brasileira de Letras, Associação Brasileira de Antropologia, também era eugenista. A antropologia e a literatura caminharam para a formulação de tradição popular e oral, a partir dessa visão eurocêntrica e excludente.
As características do folclore, elencadas por Câmara Cascudo como antiguidade, persistência, anonimato e oralidade são espelhos das narrativas e saberes indígenas. Os povos indígenas, porém, foram impossibilitados de qualquer reivindicação autoral de seus conhecimentos e espiritualidades porque eram desprovidos compulsoriamente de humanidade e direitos civis. Quando a Carta Folclórica diz que o folclore é a "maneira de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular", ela está defendendo o sentir e pensar do povo brasileiro, definida como identidade dominante (de ascendência europeia), que não reconhece os indígenas e negros como autores das suas narrativas, espiritualidades e propriedades intelectuais, reduzindo-as à "tradição popular". Na lógica do capitalismo, essa "tradição popular", do povo, é tomada por escritores (com afinidade ideológica colonizadora) que insistem no apagamento da autoria e das origens desses saberes. Tais obras publicadas como folclore reiteram a identidade nacional da literatura brasileira e sub-repticiamente o mito da democracia racial. Abdias Nascimento e Rodney William vão mostrar como tal apagamento e folclorização (muitas vezes demonização) das espiritualidades negras e indígenas vão alimentar no imaginário nacional o racismo contra eles/nós (indígenas e negros).
Literatura Indígena
Desde a década de 1990, com a conquista de direitos civis e as identidades indígenas, os escritores indígenas disputam por meio da narrativa as origens de seus encantados e de suas propriedades intelectuais. Na literatura indígena emergem obras que mostram a diferença nítida do pertencimento dos seres boto, curupira, saci aos povos indígenas. A seguir indico algumas obras que deveriam ser utilizadas de forma comparada na sala de aula e nos estudos folclóricos, para evitar a prática da história única, ou da identidade única na literatura nacional.
Plantando sementes
A literatura indígena é uma expressão dos povos originários. É a reivindicação da identidade invisibilizada no Estado-nação Brasil. No Brasil, estima-se que há 60 escritores indígenas, pertencentes a povos indígenas diversos, falantes de 274 línguas. Cada povo tem uma memória, história e ancestralidade. Tais valores irão aparecer na literatura indígena porque os escritores têm essa identidade coletiva. Para avançarmos numa democracia, nos últimos tempos mais ameaçada, é preciso cada vez mais reconhecermos a diversidade étnico-racial existente no país.
Percebemos que a política nacional conduziu a produção cultural brasileira, traduzindo suas mais perversas decisões. Nesse sentido, o folclore foi - e é - uma ferramenta de dominação cultural. Se o folclore é constituído de etnocídio indígena e negro, não podemos mais aceitar ingenuamente sua expressão literária na sala de aula. Urge uma educação étnico-racial na formação dos educadores e o estudo comparado do folclore com a literatura indígena e negra.
Quando defendemos o reconhecimento das identidades e literaturas marginalizadas, buscamos a reapropriação política, conceito formulado por Rodney William, que pretende ser uma resposta às opressões, ao poder hegemônico. A reapropriação política é a afirmação dos valores culturais como instrumentos de luta por direito e cidadania, tão caros aos povos originários.
Fonte: Uol
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