Negras raízes, negras memórias

 “No Brasil não tem racismo, aqui o preconceito é social”. Quantas vezes você ouviu ou repetiu essa frase?


Grosso modo, ela resume a gênese do mito da democracia racial: somos um povo cordato, mestiço, que não enxerga diferenças entre os seres humanos. Que as favelas, os presídios, as delegacias, as escolas públicas estejam cheias majoritariamente de pessoas negras, é apenas coincidência. Trabalhando duro, todos podem chegar lá. Olha o Pelé. Olha o Joaquim Barbosa. Nenhum brasileiro bate no peito para dizer que é racista. Aqui, nunca tivemos um Apartheid. Logo, o racismo não existe.


Mas aprendemos sobre o tráfico negreiro nas escolas, sobre a Abolição também. Sabemos que a canetada da Princesa Isabel acabou com todas as desigualdades de forma instantânea e, depois de 1888, fomos todos felizes para sempre. Temos não sei quantas Copas do Mundo pra provar, né não?


Não enxergamos o racismo (que racismo?) como consequência de um processo histórico, nem coletivo, nem individual.



Tudo isso pra chegar em Negras raízes (1976), do escritor afro-americano Alex Haley,  livro que me foi indicado em 2011 enquanto ainda integrava o GT Racismo do Ministério Público de Pernambuco. Achei meu exemplar em um sebo ainda no Recife, mas vinha adiando a leitura. E ela aconteceu, coincidentemente, em um momento importante do debate público sobre a questão racial, amplificado pelas redes sociais.


Haley, nascido na década de 1920, cresceu ouvindo histórias contadas pela avó e pelas tias sobre suas lembranças da escravidão e, especial, sobre um antepassado vindo da África. Eram fragmentos desconexos de narrativas, acompanhados sempre por três palavras estranhas, numa língua que ninguém compreendia, mas que miraculosamente tinham sido preservadas na oralidade da família. Ele então se lançou numa pesquisa em torno destes sons até chegar na Gâmbia, na aldeia de Jaffure e no seu exato ancestral, um caçador que foi sequestrado na floresta por volta de 1750 para ser vendido como escravo para os Estados Unidos.


Kunta Kinte, o Africano, tinha 14 anos quando foi escravizado. Era alfabetizado em árabe, seguia a religião Mulçumana e procurava uma jovem para se casar. De uma hora pra outra, se viu amarrado num navio negreiro por semanas a fio, teve sua religião e sua língua negados, teve seu nome trocado, de caçador se viu jardineiro e sujeito a surras de chicote por qualquer desculpa. Não compreendia como os outros negros, já nascidos nos Estados Unidos, não se rebelavam. Eles não pareciam entender que só podiam ter vindo do mesmo lugar que ele – do outro lado da “grande água”.


Mais do que a violência física, a escravização era sobretudo um atentado contra a memória do povo africano. O desmantelamento sistemático de famílias e grupos tribais tinha o propósito claro de fragmentar identidades, até o ponto de transformar seres humanos em objetos comercializáveis, sem passado e sem futuro.


Mas Kunta Kinte se recusava a abandonar sua memória. Preservá-la, portanto, foi a forma que encontrou de exercer sua rebeldia. Contava e recontava sua história para a filha, que depois a recontou para o filho, até que isso virou uma tradição familiar. Os fragmentos atravessaram 200 anos, e cinco ou seis gerações, até chegar a Alex Haley, já no século XX.


O escritor foi um raríssimo caso de afrodescendente a conhecer mais ou menos com exatidão a história da sua família. Sabia que o resultado de sua própria existência se devia a uma série de fatos sucessivos iniciados quando um adolescente africano foi sequestrado de sua aldeia na Gâmbia. A história de sua família, portanto, era a história viva das consequências da escravidão na vida de homens e mulheres contemporâneos. Transformada em livro tornou-se também uma história com a qual todos os afrodescendentes americanos podiam se identificar.


É curioso que não tenhamos nada parecido com isso na produção literária brasileira. Curioso, mas compreensível. Se a reação americana ao fim da escravidão foi o segregacionismo às claras, a brasileira foi um típico “faz de conta que não está acontecendo”, pelo qual pagamos até hoje.


Nas semanas em que lia Negras raízes, um homem foi linchado no Maranhão, amarrado a um poste, por suspeita de participação em um assalto. Dias depois, o músico Emicida publicou no Facebook um post revoltado em que contava como, apesar de sua fama, simplesmente não conseguia pegar um táxi em São Paulo junto com outro amigo – todos se recusavam a levá-los onde quer que fosse. Domingo passado, na minha frente, dois policiais de motocicleta subiram agressivamente à calçada para cercar um rapaz que andava calmamente de mochila.


O homem linchado no Maranhão, Emicida e seu amigo e o rapaz abordado pela polícia. Todos negros.


Recentemente, numa palestra em hotel cinco estrelas em São Paulo, o neurocientista americano Carl Hart falou sobre políticas segregacionistas de combate às drogas para uma plateia 100% branca, em um País cuja população é metade preta e parda. Ele chamou a atenção para esse fato e disse que devíamos ter vergonha. Negro, Carl Hart protagonizou um boato de internet, segundo o qual teria sido barrado na porta do hotel. Não foi – mas alguém duvida de que poderia ter sido?


Mais uma vez, pontuo a questão da memória como um dado crucial para este estado de coisas. Nas palavras do próprio Emicida, em entrevista fresquinha à BBC Brasil:


Então, o branco que descende de espanhol fala “ah, meus parentes são da Espanha”, e eu não posso dizer para você se meus parentes são de Moçambique, de Angola, da África do Sul… porque eles vieram trazidos à força, e os livros de registro sobre isso foram queimados, foram destruídos numa atitude de rancor de pessoas que discordavam da abolição da escravatura.


Se olhamos para uma favela achando que é só coincidência a cor da pele de seus moradores, estamos desconsiderando que os pais dessas pessoas provavelmente viviam numa miséria ainda maior; que seus avós podem ter sido forçados a invadir terrenos para poder viver perto do trabalho, se sustentando com subsalários em subempregos; que os bisavós foram a primeira geração de negros nascidos livres no Brasil – livres e abandonados à própria sorte; que os tri-avós chegaram a morar em senzalas, que os tataravós morreram trabalhando sem nunca ganhar um tostão por isso; e que, mais atrás, os avós dos tataravós faziam parte de legiões de seres humanos arrancados de suas terras, de suas famílias, de sua língua, de sua religião, de sua cultura e de sua humanidade para que o continente americano seja hoje o que é.


Isso não é pouca coisa.


Negras raízes não é nem de longe um primor da literatura universal, nem se destaca pelo uso da linguagem. É apenas uma história bem contada. Uma história que, sobretudo, precisa ser contada.


***


PS: A foto de destaque neste post foi tirada no quilombo Serrote do Gado Brabo, em São Bento do Una, interior de Pernambuco.


Fonte: Lombada Quadrada

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