Holanda 'ousa' com a liberdade há 4 séculos




Foi a partir de Amsterdã, a capital da Holanda, onde primeiro se garantiu a liberdade de imprensa
Foto: Getty Images
 Voltaire Schilling
A Holanda surpreende o mundo. Além de há alguns anos ter liberado comedidamente o consumo de drogas em certas cidades grandes e legalizado o casamento homossexual, o parlamento em Haia, em abril de 2001, aprovou a eutanásia, a morte consentida do paciente terminal. Se muitos ficam chocados pela liberalidade do país, é bom ressaltar que essas atitudes não vêm de agora, mas estão entrelaçadas com os derradeiros quatro séculos da história dos batavos.

Que ninguém se assombre com as coisas que ocorrem na Holanda de hoje. Lá tudo se ousa, não só o direito de poder drogar-se, o de casar-se com o sexo que melhor aprouver, como o mais recente, o de consentir-se que nos matem no instante em que a vida tornou-se insuportável.

Coisas da Holanda, diz-se. Desde o nascer daquele pequeno país, nos tumultos das guerras religiosas do século 16, quando autodesignou-se de República das Províncias Unidas (formada por sete províncias e várias cidades independentes), os holandeses optaram por prestigiar a liberdade. Enquanto os reis e os padres se associavam no restante da Europa para oprimir, reprimir, ou assustar com as penas do inferno, os seus súditos e fiéis, as gentes dos Países-Baixos seguiram o oposto.

Rebelando-se contra o Império Espanhol de Felipe II, que queria lhes enfiar goela abaixo o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, apostaram na harmonia e no bom convívio dos contrários. Enquanto a nobreza da vizinhança ainda enaltecia o cavaleiro de espada e escudo, fanfarrão e briguento, os holandeses admiravam o mercador hábil nos dinheiros e na conquista das praças, dado ao cálculo e não à bravata.

O Tratado de Tolerância

Para atrair os que pensavam como eles, acertaram no Tratado de Tolerância da União de Utrecht, acordado em 1581, que ninguém que lá vivesse ou que lá chegasse em busca da "poorterschap", o direito de cidadania, seria importunado por motivos religiosos. Quer seguissem Lutero ou Calvino, quer carregassem a Torá, fossem católicos fugidos do bispo ou anabatistas acusados de heresia, não importava, todos teriam guarita. Não queimariam nem bruxas nem filósofos.

Foi assim que, naquela terra desolada do Mar do Norte, no grande pântano gelado que era a Holanda do século 16, a liberdade, no seu sentido mais lato e profundo, sentou pé na Europa. No momento em que na Ibéria, na época da União das Coroas, se afastava a possibilidade de unir-se por canais o rio Tejo ao Manzanares, visto tal obra ferir a vontade Deus, na Holanda a população inteira, desafiadora, empunhava a pá e empilhava pedras nos diques para dominar, metro a metro, a braveza do mar que a assolava. Se na Ibéria expulsavam os judeus como raça maldita, marrana, na Holanda eles serviam como
modelos para as figuras sagradas das pinturas de Rembrandt.

O mercador como modelo

Enquanto em Portugal e na Espanha, de monges e de soldados, todos se aferravam ao princípio da honra e de que lidar com títulos e promissórias eram coisas baixas, indignas de um povo cristão, os homens de Roterdã e de Amsterdã, libertos de toda e qualquer autoridade conciliar ou dogmática, lançavam-se pelos mares a roer-lhes o império.

Amparados pelas Companhias das Índias Orientais (1602) e depois as Ocidentais (1621), eles colocaram um pé nas Índias Orientais, outro nas Antilhas, outro no nordeste do Brasil, outro ainda em Angola, montando assim a sua poderosa talassocracia mercantil. Por todos os lados, esses calvinistas furiosos e cobiçosos afugentaram os católicos à canhonadas (o que levou ao padre Vieira a compor, em 1640, aquele soberbo e conhecido sermão, o pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal, desesperado com as glórias dos heréticos holandeses).

Lembrando-se ainda que coubesse a Hugo Grocius, o grande tratadista do Mare Liberum, de 1609, implodir juridicamente com o Tratado de Tordesilhas (que desde o século 15 transformara os oceanos num lago ibérico), abrindo, sob os olhos do direito internacional, as águas do mundo a quem mais ousasse.


Liberdade de imprensa e pensamento

Foi a partir de Amsterdã onde por primeiro garantiu-se a liberdade de imprensa e onde se editaram as principais obras dos Iluministas, para infelizmente serem censuradas ou queimadas na França dos Luíses (A Enciclopédia de Diderot, o grande instrumento da revolução intelectual do século 18, foi imprensa inteiramente na Holanda a partir de 1751).
Como também somente no clima rude, mas inquiridor da Holanda que o filósofo Baruch Spinoza pôde concluir a sua leitura crítica dos Evangelhos e de outros livros sagrados, publicando-a em 1670 com o título de Tratado Teológico-Político (se bem que logo condenada pelo sínodo da Igreja Reformada e banido em 1674), oferecendo o caminho para a defesa da liberdade de culto e do estado secular que iria inspirar o liberalismo político no século seguinte. Tudo isso fez daquele pequeno país o paraíso da editoração do livre-pensamento, contribuindo para que a Holanda no século 17, sozinha, imprimisse mais livros do que todos os demais países europeus juntos.


O testemunho de Descartes

Nada melhor do que o testemunho do filósofo Descartes, que lá se fixara desde 1628, para atestar o fabuloso que era viver nos Países Baixos naquela época (*). Em carta ao seu amigo Balzac, datada de maio de 1631, escreveu: "que outro lugar poderia haver no resto do mundo em que todas as comodidades da vida, e todas as curiosidades que podem ser desejadas sejam tão fáceis de serem encontradas senão como aqui? Em que outro país se pode gozar de uma de uma liberdade tão completa, se pode dormir com menos inquietude, em que outro país há sempre exércitos prontos para nos proteger, onde os envenenamentos, as traições, calúnias sejam menos conhecidos, e onde tenha restado mais do que um pouco de inocência de nossos ancestrais?" Portanto, nada de espantar-se com que nos chega de lá agora, nada de sustos. Coisas da Holanda.


(*) Um dos motivos que afirmaram a decisão de Descartes deixar Paris em definitivo para ir viver nos Países Baixos foi o impacto que o julgamento de Galileu causou na época, acusado de heresia pelo Tribunal da Inquisição em Roma, em 1633, por sustentar que a Terra se movia.




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