Pelas lentes da ciência


A invenção da fotografia permitiu avanços inéditos na medicina, mas nas revistas científicas sobressaíam casos bizarros e estereótipos sociais

James Roberto Silva


Foi amor à primeira vista. Desde que surgiu, nos anos 1830, a fotografia tornou-se uma ferramenta valiosa para os mais variados campos científicos, da geologia à antropologia, da astronomia à medicina. Era a técnica ideal, superior ao desenho e à pintura, para retratar a aparência das células, das estrelas, das espécies botânicas, das camadas rochosas, dos cadáveres.

A medicina foi um dos ramos da ciência que mais prontamente absorveram a nova técnica de produção de imagens, capaz de prestar serviços à clínica, à cirurgia, à histologia, à fisiologia e à medicina legal. Até então, os efeitos das doenças no corpo humano eram reproduzidos por meio de desenhos, gravuras e moldes em cera. Diante da rapidez da fotografia e da riqueza de detalhes de suas imagens, as técnicas tradicionais de representação passaram a ser questionadas em sua fidelidade ao real, sem falar na praticidade da realização – uma gravura, para ficar pronta, consumia muito tempo e o seu desenhista jamais apreendia todos os aspectos da patologia. Além disso, o desenho era resultado do olhar subjetivo do artista, ao passo que a técnica fotográfica gerava seus registros mecanicamente, dispensando a intervenção humana. Essa proposta de objetividade agradou em cheio aos cientistas.

Um dos primeiros empregos dados à fotografia na medicina foi o registro de células ampliadas em microscópio, em 1840, na França. Logo ela passaria a retratar grandes dimensões, em clichês de pacientes mentais, nos Estados Unidos e na Inglaterra, e em casos de ortopedia, na Alemanha. À medida que a técnica fotográfica avançava, registrando as imagens em intervalos de tempo cada vez mais curtos, experiências como as de Duchenne de Boulogne, no hospital Salpêtrière, em Paris, tornavam-se possíveis. Ele fixava as expressões faciais de internos estimulados por choque elétrico. Suas fotos foram reunidas, em 1862, no álbumMécanisme de la physionomie humaine ou analyse électrophysiologique de l’expression des passions – que mais tarde atraiu a atenção de Charles Darwin, em um estudo que comparava as expressões de emoção nos humanos e nos animais. No mesmo hospital, Jean-Martin Charcot fotografou pacientes histéricos que não se mantinham imóveis. E em 1868, ainda na França, foram lançados os primeiros fascículos de Clinique photographique de l’Hôpital Saint-Louis, com fotografias colorizadas de doenças de pele.



Imagens de pacientes estimulados por choque elétrico atraíram a atenção de Charles Darwin, que comparou expressões de emoção nos humanos e nos animais


Essa profusão de imagens foi, por longo tempo, divulgada apenas em álbuns e fascículos de tiragens e circulação restritas. Ao ganharem as páginas das revistas é que as fotografias médicas conquistaram grande repercussão. A primeira revista a fazer uso sistemático dos clichês patológicos foi a Revue Photographique des hôpitaux de Paris (1869). Fotografias de tecidos, elefantíases, dermatoses e teratologias – natimortos, fetos anencefálicos e aberrações, como sujeitos dotados de três membros inferiores – eram coladas em pranchas rígidas e intercaladas às páginas de texto. O impacto da Revue photographique motivou o surgimento, em 1888, de outro periódico, a Nouvelle iconographie de la Salpêtrière, com registros de casos diversos.

Essas publicações chegavam às mãos de médicos e estudantes brasileiros, mas a fotografia não seria utilizada pelas revistas nacionais até o final do século. Imagens de patologias e de pacientes mantinham-se internas às clínicas, sem serem divulgadas. Nosso primeiro periódico médico, que se chamou Propagador das Ciências Médicas, surgiu no Rio de Janeiro, em 1827, e durou pouco, assim como muitos de seus sucessores. Só em 1869 seria lançada a longeva Gazeta Médica da Bahia, representante da Escola Tropicalista Baiana, e em 1887, no Rio, foi a vez de O Brazil Médico: Revista semanal de medicina e cirurgia. Mas ambas ainda levariam anos antes de suas primeiras fotografias serem publicadas.

Em 1899, o caso das irmãs xifópagas Maria e Rosalina, unidas pelo tórax, passou a ser acompanhado pela Brazil Médico. E com direito a fotografias. Sua primeira aparição, em quatro clichês, foi em artigo assinado pelo médico Álvaro Ramos. Naquele momento, apenas se cogitava sobre o melhor modo de separar as meninas. Mais tarde, o assunto foi retomado em artigos do também médico Chapot Prévost, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e cirurgião responsável pela separação dos corpos, em 1900. O êxito da cirurgia, bastante divulgada pela revista, rendeu repercussãointernacional para o caso, a ponto de o presidente da República, Campos Sales, sancionar uma lei liberando grande soma em dinheiro (40 contos de réis) para subsidiar a viagem do médico ao exterior. Sua missão oficial: apresentar aos “centros científicos” europeus o caso do “monstro xifópago brasileiro”, cuja separação representara um “feito cirúrgico muito honroso para a ciência nacional”.

Mas nem todas as reverberações do caso foram positivas. Em 1902, a Brazil Médico trouxe fotografias mostrando que apenas uma das irmãs sobrevivera, e abrigou um embate entre o médico brasileiro e o cirurgião parisiense Doyen. Um dos pontos do conflito dizia respeito à posição do coração naqueles que nascem com esse tipo de anomalia, o que acarreta dificuldades e limitações. O assunto ainda seria retomado três anos mais tarde, em artigo do mesmo Chapot Prévost sobre um “novo teratopato brasileiro vivo”, nascido no Ceará.

Aos poucos, a fotografia passava a frequentar as páginas das nossas publicações médicas. O repertório, embora abrangesse várias doenças e especialidades, não era equilibrado ou proporcional. Mostravam-se desde fotomicrografias até imagens de doentes de corpo inteiro, mas era notável a preferência pelo bizarro – um comportamento editorial não muito diferente das revistas estrangeiras similares em seus anos iniciais.

A Revista Médica de S. Paulo, fundada em 1898, publicou em 1900 o clichê de um cálculo extraído da bexiga, formado em torno de um grampo de cabelo introduzido pela própria paciente. A Gazeta Clínica nem esperou tanto:já no ano de seu lançamento, 1903, estampou seis fotografias alusivas a casos de ortopedia e de bouba, doença considerada uma forma modificada ou degenerada da sífilis. A estas duas revistas – as primeiras a se firmarem em São Paulo – outras vieram se juntar no início da década seguinte: os Annaes Paulistas de Cirurgia e Medicina (1913) e as Memórias do Serviço Sanitário(1918). Juntas, as quatro publicações apresentaram um significativo repertório de fotografias médicas, cobrindo praticamente todos os temas consagrados do gênero: aspectos das dermatoses, problemas ortopédicos, protuberâncias e erupções causadas por febres, cortes histológicos, proliferações, cancros, ulcerações, entre outros.


O presidente da República aprovou lei para subsidiar a viagem de um cirurgião à Europa para apresentar o caso do “monstro xifópago brasileiro”


A fotografia nas revistas paulistas tinha ainda outra finalidade: ressaltar um recorte social. Eram imagens que associavam de perto a doença com os hábitos ou as características étnicas do indivíduo. O retrato de uma colona italiana identificada como A. T., por exemplo, ilustrava um artigo no qual um médico a repreendia por causa do descuido com que executava suas tarefas cotidianas no lar e no campo. Em outro artigo, a foto do rosto de Maria Benedita da Conceição evidenciava um ferimento no olho – causado pelo fato de aquela “criada de servir” estar brincando em pleno horário de expediente. Imagens de condições sociais consideradas inadequadas para a saúde afirmavam uma crença da medicina na época: o apego das doenças a certos modos de vida.

Por razões óbvias, as fotografias quase sempre expunham doenças com sintomas aparentes. Isto deixava de fora das revistas médicas imagens de pacientes afetados, por exemplo, por febre amarela ou varíola, muito comuns na época. Nas poucas vezes em que apareceram, durante campanhas sanitárias pelo interior paulista, situavam os personagens segundo algum tipo social. Os pacientes eram retratados como portadores de um temperamento matuto, que seria próprio de população interiorana: expressões atônitas ou de desconfiança, indefesos, com braços pendidos, abatidos e em trajes rústicos. Esta advertência para os “sintomas subjetivos” das doenças estigmatizava a população humilde do interior como rústica e simplória. As fotografias médicas da época ecoavam velhos estereótipos do homem interiorano. A nova ferramenta perdia, assim, o ideal de objetividade que tanto encantara os cientistas. E por uma razão muito simples: do lado de cá da lente, selecionando o recorte pretendido, havia e continua havendo um ser humano.

James Roberto Silva é professor da Universidade Federal do Amazonas e autor de Doença, fotografia e representação: revistas médicas em São Paulo e Paris, 1869-1925 (Edusp, 2009).

Por dentro do corpo

Passados quase dois séculos de sua invenção, a fotografia segue sendo muito usada na medicina, mas a ela juntaram-se métodos de geração de imagens que dispensam irradiações luminosas. São técnicas que, tendo avançado enormemente junto com a computação, destinam-se a capturar aspectos internos do corpo humano sem invadi-lo, para fins de diagnóstico ou estudos. A lista inclui da velha e conhecida radiografia (criada em 1895) às mais recentes modalidades de rastreamento, como frequência sonora, emissão de raios-x, ressonância magnética, cintilografia, conhecidas popularmente como ultrassonografia, mamografia, tomografia e encefalografia.

São imagens que possibilitam ao médico enxergar aquilo que o seu olho não consegue ver ou fixar. Desde o advento da fotografia aplicada à medicina, a transformação mais importante sofrida pela imagem foi deixar de ser uma representação da patologia para se transformar em um índice dela, isto é, um traço ou um vestígio da doença que deixa sua marca nos modernos aparelhos médicos de rastreamento visual. O que não mudou foi a confiança dos clínicos nesse tipo de registro, associada à objetividade e à neutralidade.



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