Mary del Priore: "Minha escola foi mais do que o preenchimento de uma agenda pedagógica"

Educada em um internato do RJ, a historiadora conta como o ambiente escolar contribuiu para sua formação moral. 

A professora da Universidade Salgado de Oliveira acredita que a sua vida escolar a inspirou para se realizar como pessoa.

O imponente prédio amarelo erguia-se depois de uma curva suave na Rua das Laranjeiras, Rio de Janeiro. Atrás do imenso portão de ferro se multiplicavam corredores e salas de aula. Um pátio que me parecia sem fim, acabava na mata do morro de Santa Teresa. Ali brincávamos de roda - "a linda rosa juvenil, juvenil... - , corríamos, jogávamos "queimada". As alunas de todas as idades só circulavam em fila. A não ser no horário de recreio, não se ouvia um som, a não ser o da sineta que marcava o das outras interrupções: almoço, lanche, missa, fim das aulas. As freiras de Notre Dame de Sion, com seus véus a rodear-lhes o rosto eram sorriso e serenidade. Os professores eram leigos. Os dias longos e repetitivos. Mas eu, sempre amei minha escola. Orgulhava-me dela.

Boa aluna? Não exatamente. Mas não é preciso ser um "Caxias" para gostar do ambiente onde se aprende. E lá não se aprendia somente a ler e escrever. Aprendia-se a pensar, a imaginar, a sonhar, a projetar. Classes pequenas, feitas de amigas desde muito pequenas - entrava-se para o semi-internato com sete anos - favoreciam o contato e o calor humano. A religião impregnava tudo. Tínhamos dia de confissão, de comunhão, de penitência. Ninguém reclamava: era assim e era bom. Era bom, pois queríamos ser boas. E ter um ideal quando se é criança é muito importante. Inspirávamos nas mais velhas: moças que iriam ser "coroadas" no final do curso. Vestidas de branco e debaixo de cantos, elas confirmavam uma década de formação escolar e moral. Sim, pois além de educadas, éramos formadas. 

Atualmente, a palavra caiu em desuso. O relativismo acabou com ela. Moral? Cada qual com a sua. Na minha escola, porém, muito do que ainda se considera moralmente acertado nos foi passado. A amizade, por exemplo. Não só um sentimento, mas um laço social, inscrito no cotidiano, observável por meio de todas as modalidades de trocas: uma palavra, correspondência, presentes e presença nas horas difíceis. Amizade que, como a música, se exprime tanto na harmonia quanto nas dissonâncias. O respeito: respeito do outro, de si mesmo, da dignidade de cada um, das diferenças, das verdades, das leis. Respeito que é sentimento indispensável na vida comum. E responsabilidade. Responsabilidade não só como virtude, mas como fundamento de uma ética que tem obrigações em relação ao futuro. Ética como um sinal mobilizador de que, cada um de nós, tem que se colocar questões e assumir respostas. Ou melhor, assumir responsabilidades. 

Minha escola foi mais do que o preenchimento de uma agenda pedagógica.Mais do que um currículo ou uma lista de nomes, alguns já esquecidos. Foi o espaço de uma transformação que, ao longo da vida, me permitiu passar da reflexão à ação. Tenho por ela um sentimento de profunda gratidão. Sinto que a trago dentro de mim. 

Especialista em História do Brasil, Mary Del Priore escreveu, organizou e colaborou em várias publicações, ganhando, com isso, títulos como o Prêmio Jabuti, o Prêmio Casa Grande & Senzala, e o Prêmio APCA.

Fonte: educar para Crescer

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