Ponto a mais, pena a menos





Traço cultural da região, bordado reconstrói vidas de presidiários em Goiás.

“Frutos, flores, nos bordados das bordadeiras / Linhas de todas as cores formando lindos matizes / Traços, abraços, amores, laços que lembram raízes / Venham ver as bordadeiras, todas da mesma família”. A canção de Rubinho do Vale descreve o bordado, uma tradição matriarcal que vem sendo resgatada com força em várias cidades goianas. 

O ofício também ocupa as mãos de grupo de detentos da pequena penitenciária da Cidade Histórica de Goiás. Em roupas, toalhas e outras peças, eles estampam expressões culturais típicas do município, eleito Patrimônio Mundial da Humanidade em 2001: a flor de pequi do Cerrado, edificações do século XVIII, costumes do povo goiano e versos de Cora Coralina.

Chamada de “Projeto Cabocla – Bordando Cidadania”, a iniciativa é da artesã Milena Curado, que borda desde criança com a mãe e a avó. Inspirada em outras ações de reinserção social para presidiários, em 2008, Milena começou a ministrar oficinas de bordado antigo, ou pontos simples, para as cinco detentas da cela feminina da prisão, pagando a cada uma pelas peças produzidas para vender em sua loja. As mulheres, por sua vez, transmitiram o ofício aos seus maridos, também presidiários. “As presas eram multiplicadoras. As primeiras saíram, e eu continuei a trabalhar com as outras e os homens”, conta ela, que também desenha os moldes dos bordados. O projeto foi oficialmente reconhecido pela Justiça: a cada três dias de trabalho, um a menos de pena a cumprir. Cerca de 250 pessoas já bordaram ali, e hoje há 16 detentos artesãos.

“Cabocla”foi um dos vencedores do Prêmio Rodrigo Mello Franco de Andrade de 2014. Segundo o diretor de Articulação e Fomento do Iphan, Luiz Philippe Torelly, o projeto se destaca pelo “foco no patrimônio cultural e na flora do Cerrado, o uso de técnicas antigas praticadas na região desde o Ciclo do Ouro e o caráter humanitário e social”.

O bordado chegou à região com o povoamento da cidade de Goiás por bandeirantes de São Paulo, entre os séculos XVIII e XIX. A origem ancestral do ofício vem dos mouros do norte da África, que o levaram para a Península Ibérica. Os portugueses, por sua vez, trouxeram o bordado para o Brasil durante as Grandes Navegações. “Muitos mapas dos marinheiros eram bordados, para não desmanchar na água. Por isso ainda há cartografias daquela época intactas”, destaca Claudia Chagas, professora de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Hoje, o bordado é resgatado por costureiras goianas como alternativa econômica diante da concorrência das confecções. “Enquanto trabalham, elas relembram antigas cantigas de bordadeiras, e uma tradição puxa outra”, ressalta Salma Saddi, superintendente do Iphan em Goiás. “Essas atividades mexem com a memória das pessoas e são revertidas na valorização cultural do estado”. 

Fonte: Guia do Estudante

Por Déborah Araujo

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