Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo, de Elisabeth Roudinesco, chegou às livrarias em 2017. Com ares de biografia definitiva, o livro reconstrói a vida do pai da psicanálise através das intensas relações que ele manteve com seus mestres e discípulos, familiares e amigos, além dos pacientes.
A autora teve acesso aos novos arquivos abertos pela Biblioteca do Congresso em Washington e, na obra dividida em quatro partes, fornece insights inéditos sobre a vida do homem que mudou para sempre a nossa visão da humanidade e da cultura. A pesquisa meticulosa de Roudinesco revela um Freud que se torna - em meio à Guerra, à crise econômica e ao triunfo do nazismo - um observador atento da espécie humana, mas também um desconstrutor do judaísmo e das identidades comunitárias, aferrado tanto à tradição dos trágicos gregos como à herança do teatro shakespeariano.
Em vídeo especial e exclusivo ao Fronteiras do Pensamento, Roudinesco apresenta dados que fazem jus ao título de sua obra, Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Vamos voltar à época do pai da psicanálise. Quem foi este judeu vienense da Belle Époque? Quem eram seus familiares, seus pacientes? Qual sua ligação com o judaísmo? O que Freud buscava afinal? Mais ainda, o que ele não buscava?
Todas estas questões foram fundamentais na construção da biografia e a historiadora francesa compartilha conosco não apenas como foi o processo de construção do livro, mas também o que descobriu ao longo desta trajetória. Leia abaixo e assista à fala de Elisabeth Roudinesco, uma das principais intelectuais do mundo na área da história da psicanálise.
ELISABETH ROUDINESCO | A TERRA PROMETIDA DE FREUD
Fui fazer uma biografia de Freud em um momento em que os arquivos estavam abertos e já havia muitos biógrafos de Freud. Mas, quando fiz a biografia de Lacan, eu estava sozinha, eram arquivos novos que eu mesma havia formado.
Com Freud, cheguei a um terreno que já havia sido trabalhado. O último biógrafo era Peter Gay, que foi o primeiro a abrir todos os novos arquivos. Eu não tive a necessidade de ler toda a correspondência de Freud, pois ela já havia sido publicada. Portanto, o que busquei nos arquivos foi a genealogia familiar, a história dos pais de Freud, a história da família, a história dos primos, das tias etc.
Kurt Eisler havia reunido esses arquivos durante 40 anos. Ele era um judeu vienense emigrado e depositou os arquivos na Biblioteca do Congresso dos EUA, em Washington, pois era preciso salvar a memória do movimento psicanalítico da destruição dos nazistas. Todos os primeiros freudianos, a maioria dos freudianos, eram judeus e emigraram para os Estados Unidos. Era preciso salvar essa memória. Esses arquivos são extraordinários.
Então, no que me diz respeito, examinei os detalhes, a história dos pacientes, todas as entrevistas dos discípulos de Freud com Kurt Eisler que estão lá. Ainda há muita coisa a ser explorada. Mas, hoje, tudo está em vias de ser publicado, vai se abrir progressivamente.
Freud e Marie Bonaparte (1937)
Eu também tinha os arquivos de Marie Bonaparte, uma das principais discípulas de Freud, que ainda não foram abertos na Biblioteca do Congresso, mas tive acesso a eles por intermédio da biógrafa de Marie Bonaparte, Célia Bertin. Então, eu podia escolher, pois tinha arquivos demais. Poderia ter escrito cinco volumes.
Era preciso definir uma perspectiva, muito diferente daquela usada pelo último biógrafo. Resolvi reconstituir um Freud enraizado em seu tempo, judeu vienense, com todos os paradoxos da identidade judaica vienense, um homem da Belle Époque, um homem sábio, um sábio que tinha o sentimento de estar fazendo uma descoberta fundamental, ou seja, a exploração do inconsciente.
A terra prometida de Freud não era a terra prometida de Israel. Freud não era nada sionista. Ele era contemporâneo de Theodor Herzl, mas a terra prometida de Freud era a exploração do inconsciente.
Ele não queria que a psicanálise se tornasse o que ele chamava de “ciência judaica”. Ele queria que ela fosse universal, aberta, pois o inconsciente pertence a todos os homens. Ele era habitado pelo sentimento do seu gênio, da sua novidade.
Mostrei um Freud enraizado na história dos judeus da Galícia, dos judeus da Europa Central, dos judeus vienenses, pertencendo realmente a uma comunidade e ao mesmo tempo com um desejo de sair do gueto.
É uma constante na vida de Freud. Sair do judaísmo sem sair da identidade judaica. Freud se reivindicava profundamente judeu na tradição de Spinoza, dos judeus não religiosos. Evidentemente, em Viena, ele foi atingido pela pior catástrofe que se abateu sobre todo o mundo, mas também sobre a psicanálise: a destruição dos judeus na Europa.
Então, eu reconstituí todos esses momentos, a Belle Époque, o momento milagroso em que a psicanálise se desenvolve, quando, no fundo, ela era uma clínica para os grandes burgueses ociosos que queriam explorar seu inconsciente.
Os primeiros pacientes de Freud pareciam personagens de Proust. Também existia uma visão socialista da psicanálise, pois se queria levar a clínica psicanalítica a todas as classes populares. Existia essa visão em Viena. Freud teve discípulos que também eram sociais-democratas. Mas, profundamente, era a ideia de explorar você mesmo o inconsciente.
Meu trabalho tem essa primeira parte da vida de Freud, da Belle Époque, tem a viagem aos EUA em 1919, quando ele conquista o mundo norte-americano, e a primeira catástrofe da Guerra Mundial, pois Freud era profundamente europeu. Seus discípulos vinham de todos os países e a Primeira Guerra Mundial foi uma guerra entre nações, portanto uma guerra do ódio das nações.
Freud era antinacionalista, como Stefan Zweig, a Europa de Freud era bem parecida com a de Stefan Zweig. Eu o inseri nesse primeiro contexto e depois durante o período entreguerras, diante da ascensão do nazismo, quando acontece uma tragédia que ele não queria ver, a ascensão do nazismo.
Freud grava entrevista para a BBC, em Londres (1938)- Evidentemente, ele acabou aceitando isso e emigrou para Londres em 1938 com toda a família. Suas quatro irmãs foram exterminadas pelos nazistas. Todos os vienenses, todos os psicanalistas judeus que não puderam emigrar, foram exterminados. Mas, a maior parte deles adquiriu a cidadania inglesa, norte-americana, às vezes brasileira, argentina, mas a imigração foi sobretudo para os Estados Unidos.
Isso fez com que Freud visse, a partir dos anos 1930, que sua doutrina não era mais europeia, havia se tornado norte-americana. Ele não queria isso, era violentamente antiamericano, pois pensava que seria mais pragmática e não haveria mais a metapsicologia, a reflexão especulativa sobre a alma humana, e que seria transformada em uma terapia da felicidade.
Ele era violentamente antiamericano, até demais. Mas foi salvo, é claro, pela intervenção de Roosevelt e de Marie Bonaparte, e assim pôde emigrar. É também a história dessa tragédia.
Em segundo lugar, existe, nesse Freud paradoxal, uma mistura dos iluminismos francês, alemão e judaico. Freud era um homem profundamente racional, um sábio racional, mas também profundamente habitado pelo irracional. Era apaixonado pela telepatia, pelo ocultismo, pelos fenômenos irracionais.
Mostrei esse aspecto e a religião, que tinha um lugar considerável na vida dele. Era profundamente judeu e profundamente hostil à religião, a todas as religiões. Ao mesmo tempo, escreveu um livro sobre Moisés em 1938. Ele voltou às origens da história judaica para demonstrar que Moisés era egípcio. Ele entra no debate acerca das origens do monoteísmo.
Ele morreu em Londres, de um câncer na mandíbula, e a casa de Freud em Londres foi transformada em museu. O verdadeiro museu Freud fica em Londres. Existe outro museu de Freud em Viena, mas é um museu esvaziado, porque tudo foi levado no momento da partida. Freud se tornou inglês no fim da vida.
Fonte: Fronteiras do Pensamento
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