John Gray: Podemos viver juntos com liberdade?


A mais forte tendência no pensamento humano é a de acreditar que nossa espécie pode viver sob um sistema único de ideias.

A conclusão é do filósofo britânico John Gray, que esteve no Fronteiras do Pensamento 2015 para proferir a conferência Podemos viver juntos com liberdade?

Em sua fala, o filósofo britânico busca responder uma pergunta latente na sociedade contemporânea: para onde o incessante conflito de opiniões vai nos levar?

Até onde iremos tentando convencer (ou até forçar) o outro a aderir às nossas opiniões e visões de mundo?

É fato que a hiperconexão digital rompeu as esferas de silêncio que ofereciam relativa estabilidade para nossas relações.

Neste saudável distanciamento, éramos capazes de criar um universo impessoal, em que grupos e comunidades muito diferentes podiam subsistir sem maiores problemas. 

Porém, a internet nos convocou a vivermos juntos. O tempo todo. 

Onde seria desejável apenas respeito e alguma distância, acabamos apostando em uma guerra de surdos, com resultados que vão do isolamento à violência.
  
O que o futuro nos reserva? 

Uma potencialização sem fim destes conflitos ou o retorno a uma suposta normalidade?

Richard Sennett, na obra Juntos, cita um estudo de Robert Putnam mostrando como a convivência com a diferença, em vez de nos aproximar do outro, nos incentiva ao retiro e produz um movimento contínuo de tribalização da vida social.

Já John Gray, esclarece que a humanidade viverá de forma conjunta, como sempre o fez – seja no passado ou no presente: com a pluralidade de ideias, de sistemas de governo e de culturas.

Segundo o filósofo, se buscamos algum tipo de unidade, o que deveria prevalecer não são os projetos que buscam unificar identidades, sendo que estes frequentemente assumem faces violentas.

O que deve vir à tona é justamente o contrário: devemos buscar o fim dos conflitos, abraçando a pluralidade da civilização.

"É uma tendência incurável no pensamento ocidental. Imaginar que as nossas instituições sejam um sistema global."

Confira abaixo a fala do filósofo. 

Do nazismo ao extremismo islâmico, passando pelo comunismo e pela chamada Revolução Democrática, John Gray esmiuça a história e aponta como mitos aparentemente opostos partem de uma mesma crença fundamental... 

A imposição de um sistema universal.

Curta nossa página no Facebook para participar desta discussão:

John Gray: Podemos viver juntos com liberdade?

Não apresentarei doutrinas ou filosofias, porque uma das minhas crenças mais fortes é que a verdade a respeito do mundo não pode ser contida numa filosofia única ou num sistema único de ideias. 

Temo e suspeito de qualquer projeto, intelectual ou político, que queira unificar e harmonizar o pensamento humano, a vida humana.

Um dos autores do século XX que mais aprecio é o escritor português Fernando Pessoa. 

Diferentemente de Pessoa, não posso dizer que tenho múltiplas identidades ou heterônimos. 

Mas, como ele, resisto a qualquer ideia ou crença de que nosso objetivo deva ser uma identidade única e uniforme, um tipo único de sociedade que prevaleça no mundo todo. 

Nossa meta deve ser um fim aos conflitos e isso se encaixa com o tema do Fronteiras do Pensamento, Como viver juntos.

Podemos sim viver juntos, porque o mundo futuro, assim como o atual, consistirá não apenas de um tipo de sociedade ou visão de mundo, ele consistirá de diversos regimes, assim como no passado. 

Haverá democracias liberais e não liberais, monarquias, repúblicas, impérios, áreas de anarquia.

Qualquer sonho de um sistema universal, seja ele comunista, anarquista, neoliberal ou positivista, é uma ilusão. 

Nos séculos XIX e XX, e nas primeiras décadas do século XXI, nenhum desses sonhos demonstrou qualquer sinal de estar se tornando mais próximo da realidade, mas, mesmo assim, estes sonhos são constantemente renovados e, muitas vezes, são renovados de forma violenta. 

A violência desse sonho da unidade, da harmonia, da civilização única, teve diversas formas no século XX: tivemos formas violentas no leninismo, bolchevismo, stalinismo, no trotskismo e no maoísmo. 

Todos eram formas de violência organizada. Também tivemos o nazismo, o fascismo e mais recentemente, projetos neoconservadores de mudanças de regime.

Eu fui um dos que atacou o projeto da Guerra do Iraque desde o início. Aliás, antes do início, em 2002, e não fui o único a dizer isso. 

Quando ficou claro que algo como a Guerra do Iraque aconteceria, eu fui totalmente contra e disse que o resultado seria a destruição do Estado do Iraque seguido de um governo fraco onde haveria uma enorme quantidade de conflitos sectários. 

Seria fácil destruir o Estado do Iraque, o impossível seria reconstruí-lo e isso foi de fato o que aconteceu.

É claro que houve aspectos geopolíticos na Guerra do Iraque, que tinham a ver com o petróleo no Irã, mas, para muitas pessoas que eram a favor, criar uma democracia no Iraque seria algo realizável. 

Elas acreditavam que a democracia se espalharia pelo Oriente Médio. Fazia parte do que algumas pessoas chamavam de Revolução Democrática Global. 

Ainda há pessoas que defendem isso.


A maioria das pessoas acredita que há um tipo de regime que é o melhor para o mundo. 

A maior parte das pessoas acredita que a história humana se encaminha a um tipo único de regime. 

Se esse desenvolvimento for lento ou se houver resistência de algumas partes do mundo, esse desenvolvimento pode ser acelerado por meio de guerras, de invasões, de mudanças de regime.

Os resultados dessa crença são quase sempre os mesmos: o experimento mais recente disso foi aquele que a França e a Grã-Bretanha, mais do que os EUA tentaram fazer na Líbia, derrubando o Kadafi e o resultado foi uma condição de caos total na Líbia, com militantes islâmicos que cada vez têm mais poder, uma excesso de refugiados econômicos que têm ido cada vez mais para a Europa. 

Enfim, os resultados foram ainda mais rapidamente desastrosos do que os que vimos no Iraque.

Então, não existe nenhum exemplo de mudança de regime desse tipo que tenha obtido os resultados daqueles que a apoiam. 

Não estou nem dizendo que tais resultados eram desejáveis, estou apenas dizendo que, em provavelmente todos os casos, os resultados foram diferentes ou até mesmo opostos aos imaginados por aqueles que apoiavam as mudanças de regime. 

Mesmo assim os governos ocidentais e os pensadores ocidentais ainda apoiam isso. 

É uma tendência incurável no pensamento ocidental. Imaginar que as nossas instituições sejam um sistema global.

Na década de 1980, eu participava de muitos debates sobre se a União Soviética entraria em colapso e eu acreditava que sim. 


Quando isso começou, no outono de 1989, eu critiquei fortemente Francis Fukuyama que então havia publicado seu primeiro artigo sobre o fim da história, em agosto de 1989. 

Em outubro daquele ano, publiquei uma crítica ao artigo de Fukuyama, publicado no meu livro Anatomia de Gray, em que falei que não estamos observando o fim da história. 

Pelo contrário, na verdade, a história está continuando no seu curso normal. O curso normal da história não é uma divisão ideológica, mas sim o conflito por recursos, por religiões, por nacionalidades, grupos sociais concorrentes, isso sim é normal. 

Me chamaram de pessimista, de negativo e até de apocalíptico. Achei engraçado, pois apocalíptica é a visão de que a história acabou. 

Me perguntaram: como poderemos viver no mundo descrito por Gray e eu respondi como puderam viver nele até agora?                          

Me perguntaram, no início da década de 1990,o que você acha que vai acontecer após a nova direita? 

Eles estavam falando da direita liberal. Eu respondi que era óbvio o que aconteceria, a antiga direita voltaria. 

Os racistas, os nacionalistas, os machistas, os antissemitas, anticiganos, antigays, anti-imigrantes, tudo isso voltaria. 

Isso está acontecendo agora na Hungria, na Grécia, em todos os lugares. 

Na Espanha e na Itália com os partidos da esquerda, na França, a Frente Nacional está mais forte do que nunca, e é isso que vai acontecer.

Por que esse tipo de sonho de sistema único é tão forte, sendo que ele já foi falsificado tantas vezes? Não existe nenhum tipo de tendência que aponte realidade nesse direcionamento a um sistema único.

Algumas pessoas me dizem que estou atacando os mitos, falsificá-los. Não. Mitos não podem ser vistos como ideias falsas, porque não são teorias científicas. Mitos são as únicas coisas que as pessoas têm de fato. Então, eles vão continuar a existir.

Devemos refletir sobre se queremos fortalecer estes mitos, se ficamos apreensivos quando nossos mitos são questionados, se ficamos nervosos ou deprimidos. 

Se é isso que procuram, sugiro que não leiam meus livros e procurem Malcolm Gladwell ou livros de autoajuda. A minha proposta é pensar em uma forma alternativa para viver bem, que é a forma como quase todos pensavam até 200 anos atrás. 


O conteúdo traz breve biografia, indicação de livros, citação de frases e relação de links e vídeos, além do artigo de Gray, O que assusta os novos ateus, publicado originalmente no site do jornal The Guardian e traduzido pelo Fronteiras do Pensamento.

About Leituras Livres

This is a short description in the author block about the author. You edit it by entering text in the "Biographical Info" field in the user admin panel.

0 comments:

Postar um comentário

Se tem algo que posso lhe dizer após ter chegado até o fim deste post é que estou muito grato por sua visita.

Por que a capoeira é a "arte-mãe" da cultura brasileira e da identidade nacional

Por Henrique Mann Músico, historiógrafo e mestre em Artes Marciais A capoeira ajudou a moldar o samba e até o futebol do país, defende pesqu...